Neste artigo da “História Queer”, nós viajamos ao Império Antigo, para a Quinta Dinastia do Egito (há cerca de 4.500 anos) e, possivelmente, um dos primeiros registros sobre um casal homoafetivo em toda a história. A tumba de Khnumhotep e Niankhkhnum foi encontrada em 1964 e, desde então, tem sido o tópico de um debate feroz.

Com uma língua escrita tão diferente da nossa, fica fácil de existir um viés ideológico nas traduções disponíveis. Apesar de não haver nenhuma forma de provar a sexualidade destas duas pessoas conclusivamente, o que podemos fazer é ver a evidência e, a partir daí, seguirmos um processo usado para a maior parte dos estudos históricos.

Khnumhotep e Niankhkhnum não eram nobres, mas eram bem colocados na sociedade como uma espécie de “camareiros’ do Faraó Nyuserre Ini. Isso fez com que suas tumbas compartilhadas fosse considerada um fato raro, já que ambos pertenciam ao mesmo escalão. Quando pessoas eram enterradas juntas no Egito, era para que elas acompanhassem uma à outra em suas respectivas jornadas pós-vida. Frequentemente, servos e suas famílias eram sepultados juntos. Mas, se eles fossem apenas colegas de trabalho, não haveria razão aparente para isso, já que nenhum serviria ao outro.

Khnumhotep e Niankhkhnum retratados com os rostos próximos e seus descendentes em plano menor (Foto: Reprodução)
Khnumhotep e Niankhkhnum retratados com os rostos próximos e seus descendentes em plano menor (Foto: Reprodução)

Nos hieróglifos gravados em suas tumbas, os dois homens também são retratados de mãos dadas, beijando-se e sentados um ao lado do outro; um desses retratos os mostra com narizes muito próximos, abraçando-se de uma forma que era usada para retratar casais.

Ambos tinham esposas e filhos, mas eles não foram retratados com frequência nas tumbas e apenas com suas figuras lado a lado, nunca tendo prioridade ou foco entre uma e outra – o foco era quase sempre nos dois homens juntos; eles também são retratados em uma tábua, onde estão sentados juntos num arranjo de assentos similar ao esperado de um casal .

Além de tudo isso, os nomes que temos para eles não são seus nomes próprios, mas como as pessoas se referiam a eles, traduzidos grosseiramente para algo como “juntos na vida, juntos na morte”.

Entre hipóteses concorrentes, aquela com a menor das suposições deveria ser selecionada

– William de Ockham 

Interpretar esta pequena coleção de fatos é um assunto de grande debate dentro da comunidade de historiadores. Enquanto há um pequeno grupo que acredita na hipótese de que os dois homens tenham sido amantes, a crença amplamente mais aceita é a de que eles eram irmãos. A tumba na qual foram sepultados é frequentemente chamada de “A Tumba dos Dois Irmãos”, mesmo que fosse raro irmãos serem enterrados juntos.

Enquanto reis e nobres levavam servos e escravos para suas tumbas, isso ocorria com o propósito claro de que eles estariam indo para a pós-vida com seus mestres para servi-los até na morte. Parece improvável que esse seja o caso de Khnumhotep e Niankhkhnum, já que eles eram do mesmo status social e, assim, não haveria razão para que um deles estivesse servindo ao outro na pós-vida.

Infelizmente, nós já aprendemos com a história de Safo das Lebos que a maioria dos historiadores prefere contorcer as coisas para tornarem a história o mais heterossexual possível. Logo, a possibilidade de que os dois homens formaram um casal no Império Antigo é amplamente ignorada.

Eles explicam os vários retratos dos dois em posições íntimas com a hipótese de que os homens foram irmãos siameses, mesmo que para isso eles deveriam estar retratados juntos em um só lugar, ao invés de mudarem suas posições a cada registro. Os historiadores também usam essa interpretação para explicar o nome de Khnumhotep e Niankhkhnum, dizendo que “juntos na vida, juntos na morte” estaria relacionado à suposta conexão física entre ambos.

Cena de pesca retratada no túmulo de Khnumhotep e Niankhkhnum (Foto: Getty Images | Reprodução)
Cena de pesca retratada no túmulo de Khnumhotep e Niankhkhnum (Foto: Getty Images | Reprodução)

Apesar da possibilidade de argumentarmos que estes dois homens foram irmãos, seria muito difícil prova-lo. E, nessa mesma dificuldade, nós encontramos o porquê de isso não ser verdade: é necessário muito contorcionismo para chegar a essa conclusão, e isso a torna consideravelmente improvável. São presumidas muitas coisas que não possuem nenhuma evidência, enquanto há uma resposta mais simples que não precisaria de um grande salto lógico, apenas um pequeno e sensível passo à frente.

Estes dois homens muito provavelmente estavam em um relacionamento romântico. Os fatos levam a essa conclusão óbvia, sem grandes suposições a serem feitas. O que “impede” tal afirmação é apenas a ideia de que houve um casal gay naquele período, naquele tempo e naquele lugar, mas com pouca ou nenhuma evidência da mesma homofobia que afligia a Europa quando a tumba foi descoberta. A ideia de que dois homens se amando eram respeitados é abominável para muitos historiadores.

Se a tumba fosse dividida por um homem e uma mulher, ao invés de um homem e outro homem, a conclusão do relacionamento romântico teria sido presumida imediatamente. Ninguém teria cogitado sugerir que os dois fossem gêmeos siameses fraternos, ou que o seu relacionamento fosse platônico de alguma forma. A razão pela qual os historiadores estão buscando tanto evitar ver a resposta mais simples é óbvia: eles não querem acreditar que tal relacionamento pudesse existir, muito menos que fosse aceito, e a ideia de que a sociedade egípcia tenha produzido algo similar é um insulto para eles, porque a homossexualidade em si é um insulto – principalmente em um país que, hoje, pune LGBTs com até 12 anos de cadeia e os submete a torturas.


Este texto é adaptado do original de Laura Mills e faz parte do projeto Making Queer History, cuja existência só é possível graças a doações. Se tiver interesse, você pode fazer uma doação única no Paypal ou tornar-se um Patrono.