*Com João Ker
Madonna lança nesta sexta-feira (14) “Madame X”, seu 14º álbum de estúdio, capitaneado pela multipersonalidade do alterego que dá título ao trabalho. O disco, que traz um mergulho da artista em si mesma como há anos não ouvíamos, mescla ao mesmo tempo as influências musicais com as quais ela esbarrou durante seus últimos anos de moradia em Portugal.
Da deliciosa parceria com Anitta no funk “Faz Gostoso” à inspiração dance e oitentista de “I Don’t Search I Find”, “Madame X” traz faixas pensadas para as pistas de dança, como já anunciava o reggaeton de “Medellín”, seu featuring com Maluma.
Mas o álbum apresenta também a inquietude, a revolta, o medo e as angústias de uma artista que atravessou décadas e continentes em sua carreira apenas para descobrir que, hoje, o mundo se tornou um lugar diferente daquele que ela idealizava quando surgiu nos anos 1980.
Parte da campanha de divulgação para “Madame X” tem se apoiado na relação de Madonna com o público LGBT, desde as letras e entrevistas até os itens comercializados nesta era. Mas, ao contrário de outras estrelas do pop, a Rainha assume esse posicionamento sem a ambição de se escorar em uma conveniência comercial, mas sim resgatando um nicho que a acolheu (e vice-versa) desde seu surgimento.
Abaixo, nós comentamos alguns dos (muitos) pontos de ativismo de Madonna em favor da comunidade LGBT ao longo das décadas, como forma de relembrar o público, mas também celebrar e acolher seu novo e bem-vindo lançamento. Vem com a gente:
Anos 1980: Início da fama, Madonna e a epidemia do HIV
Durante seu discurso no GLAAD Awards deste ano, Madonna relembrou a vida em Detroit no final dos anos 1970 e sua relação com Christopher Flynn, o professor de dança homossexual que foi o primeiro homem a lhe chamar de bonita. A relação profissional transformou-se em amizade e Flynn foi o responsável por levar a jovem Ciccone à sua primeira boate gay.
“Pela primeira vez, eu vi homens beijando homens, meninas vestidas como meninas, meninos usando hot pants, danças loucas e incríveis, e um tipo de liberdade, alegria e felicidade que eu nunca tinha visto antes. Eu finalmente senti que não estava sozinha, […] e isso me deu esperanças”, disse Madonna sobre a experiência.
Daí em diante, nascia uma das aliadas mais fortes que a comunidade LGBT já teve na indústria do entretenimento. A década de 1980 levou Madonna para Nova York, onde ela fez amizade com vários artistas, a maioria deles assumidamente gays, como o fotógrafo Herb Ritts. Era o início da epidemia da AIDS e, à época, a doença era conhecida como “câncer gay”.
Com o passar dos anos, Madonna perderia muitos amigos próximos para o HIV, como Martin Burgoyne e Keith Haring, nome proeminente da arte pop. Em 1983, a jovem artista estouraria com seu primeiro hit “Holiday”, surfando uma onda que só aumentaria com “Like a Virgin”, no ano seguinte. Nascia ali a nova sensação do pop, com direito a capa da revista Time e os títulos de mulher mais famosa da década e ícone das adolescentes americanas.
O ano de 1986 veio com o auge da MadonnaMania. Desde então, ela já não se preocupava com o impacto negativo das críticas e, como prova disso, lança o vídeo para o hit #1 “Open Your Heart”. Nele, a artista encarna uma dançarina de peep show para uma plateia formada por diversos espectadores, entre eles dois marinheiros trancados em uma cabine, que insinuam ser gays, e uma mulher vestida em trajes masculinos, quase uma drag king.
Certamente, este foi um dos primeiros vídeos mainstream a mostrar cenas assim na MTV norte-americana, mas estava longe de ser o principal “ato” de Madonna para dar mais visibilidade a LGBTs.
No fim da década, Madonna lança “Like A Prayer”, um dos maiores discos pop dos anos 1980. Junto à versão física do LP e o encarte com as letras, Madge decide divulgar um cartão com informações sobre a AIDS, que não apenas alertava sobre suas formas de infecção, mas também explicava como pessoas com HIV precisavam de apoio e compaixão, independente de sua orientação sexual.
No final do encarte, havia a mensagem: “AIDS IS NO PARTY!” Hoje, em tempos de Google e internet, isso pode parecer banal, mas estamos falando de 1989, quando papel e tinta custavam caro e o acesso à informação era mais escasso. As famílias não falavam sobre sexo, as escolas menos ainda. E, na mídia, o HIV ainda era tratado como a doença dos gays.
Anos 1990: na cama e na estrada com Madonna e os gays
No início da década 1990, junto com a trilha sonora do filme “Dick Tracy”, Madonna lançou um de seus maiores sucessos até hoje. “Vogue” foi inspirada nos bailes promovidos em NYC pela comunidade LGBTQ, principalmente os negros e latinos. Reza a lenda que a inspiração veio diretamente da House of Xtravaganza, famosa pelos seus bailes no Harlem. A música é uma homenagem a essa sub-cultura, que acabou sendo catapultada à visibilidade mundial pela artista, permanecendo três semanas no #1 do Billboard Hot 100.
Como parte da divulgação, Madonna fez uma de suas performances ao vivo mais conhecidas até hoje, no palco do Video Music Awards. Ao apresentar “Vogue” com sua corte ‘camp’, ela viveu o sonho de uma Maria Antonieta descaradamente flamboyant e rodeada de gays.
No mesmo ano, era lançada a coletânea “The Immaculate Collection”. Antes das playlists e dos “This is fulana”, no Spotify, discos de coletânea eram um prêmio para artistas que conseguissem reunir sucessos suficientes a ponto de encher um disco inteiro. Para além de seus grandes singles dos anos 80, Madonna lançou duas canções inéditas: “Rescue Me” e “Justify My Love”.
No vídeo desta última, Madge percorre os quartos de um hotel onde cenas sensuais são protagonizadas por homens, mulheres, drag queens e até o namorado da cantora na época, o modelo Tony Ward. Mais uma vez, ela leva ao mainstream imagens de gays e lésbicas, questionando por que suas experiências sexuais são rotuladas como práticas ‘fora do comum’.
Considerado “ousado demais”, e novamente sugerindo cenas de sexo homoafetivo, o vídeo foi censurado pela MTV dos EUA. Com isso, Madonna desbravou simultaneamente um novo nicho de mercado, colocando “Justify My Love” à venda como home video e conquistando mais uma vez o topo da Billboard.
Em 1992, Madonna lança o livro “SEX”. Nele, a já coroada Rainha do Pop encarna seu alterego Dita, com textos e poesias de conteúdo erótico, além de fotos explícitas, clicadas por Steven Meisel e que revelam Madonna em posições sexuais ao lado de desconhecidos e de cantores, modelos e atores famosos em Hollywood, como Naomi Campbell, Vanilla Ice e Isabella Rossellini. Tinha de tudo ali: práticas sexuais hétero, homo, fetiches e muito mais.
Acompanhando o lançamento e fazendo ainda mais barulho, ela divulga um de seus melhores álbuns até então, “Erotica”. O vídeo da faixa-título traz imagens de bastidores do “SEX”, enquanto as músicas mostram uma das facetas mais sensíveis – e esquecidas – da carreira de Madonna.
Em “In This Life”, a Rainha do Pop pergunta ao seu ouvinte: “Você já viu o seu melhor amigo morrer? Você já viu um homem crescido chorar?”. A canção fala do luto e da perda ao se dar conta de que seu melhor amigo havia morrido, provavelmente, por causa do HIV, e era tratado de forma diferente por ter escolhido um homem para amar. No mesmo álbum, “Why’s It So Hard” também desafia o sistema para viver o amor, sem dor.
Em entrevistas da época, Madonna revelou que a necessidade de discutir sexo como tabu em “Erotica” teve como influência o contexto do HIV, além da intenção de provocar uma reflexão que desconstruísse a imagem marginalizada de populações LGBT+. Recentemente, ela admitiu que, durante o auge da epidemia, levava drogas não-autorizadas do México aos EUA, para ajudar no tratamento de conhecidos infectados.
Ao mesmo tempo, a mulher mais famosa do mundo saía na turnê pop de uma artista solo feminina que definiria todo o conceito de shows como o conhecemos hoje: cenários, figurinos, uma trupe de dançarinos e coreografias mirabolantes – cabia de tudo na turnê Blonde Ambition. Ali, Madonna deu início às megatours, acompanhada pelo único nome que se comparava ao dela no universo pop: Michael Jackson.
Os bastidores da turnê geraram o documentário “Truth or Dare – Na Cama Com Madonna”. Entre as apresentações das músicas, muitas cenas de convivência da cantora e seus bailarinos gays, em sua maioria. Seus afetos e desafetos pareciam ter tanta importância para a história quanto a parte técnica dos shows, a ponto de mostrarem a participação dos dançarinos Parada do Orgulho em Nova York.
Poucos anos depois, Quando Madonna veio ao Brasil pela primeira vez, em 1993, o filme foi exibido na TV aberta. Hoje, isso dificilmente aconteceria.
Anos 2000 até hoje: Madonna, iconografia e ativismo político
As duas últimas décadas na carreira de Madonna foram frequentemente pontuadas por lutas políticas e críticas ao sistema. No início dos anos 2000, ela voltou a bater no patriarcado e na misoginia do sistema, com singles como “What it feels like for a girl” e “Don’t tell me”.
Na mesma década, ela lançou outro de seus discos mais controversos até então, “American Life”, onde se opõe abertamente contra o governo de George W. Bush, em uma época onde estrelas do pop não estavam tão dispostas assim a criticar o Presidente dos EUA como estão com Donald Trump no poder.
Em 2010, Madonna se pronunciou contra o governo do Malawi por causa da prisão de um casal gay que foi detido por ter celebrado publicamente a sua união. Foi naquele país, inclusive, que nasceram 4 de seus 6 filhos, e onde ela vem desenvolvendo vãrias ações sociais desde então.
Dois anos depois, durante a passagem de sua turnê na Rússia, Madonna foi ameaçada de prisão por defender os gays publicamente (o país tem uma lei que proíbe a “propaganda homossexual”) e se pronunciar a favor do grupo Pussy Riot, banda formada por mulheres lésbicas e feministas, que foram presas por protestar contra o governo de Vladimir Putin.
Em 2013, ela se vestiu de escoteira na premiação da GLAAD, criticando durante seu discurso de apresentação para o jornalista Anderson Cooper os escoteiros dos EUA, que haviam banido a participação de homens gays das suas atividades. Neste ano, ela voltaria ao palco do evento para receber o prêmio ‘Advocate for Change’, dedicado às suas mais de três décadas para provocar mudanças sobre a causa LGBT.
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Em janeiro, alguns meses depois de ter aderido à campanha do #EleNão contra Jair Bolsonaro, Madonna aproveitou a noite de Réveillon para subir ao palco do Stonewall Inn, bar nova-iorquino que marcou há 50 anos o início do movimento LGBT como o conhecemos hoje.
Com o lançamento de “Madame X”, Madonna retoma sua relação com a comunidade LGBT sem nunca ter deixado-a de lado, em uma era onde se aliar a causas minoritárias tornou-se uma comodidade lucrável para um novo público acostumado ao ativismo de hashtag. E, ainda assim, ela consegue usar sua criatividade e sua voz de maneiras únicas.
Além da mensagem de resiliência e superação por trás de “I Rise”, ou das reflexões e celebrações que permeiam outras faixas do disco, talvez nada mais seja tão gritante quanto os visuais entregues para “Dark Ballet”. Já não bastasse o poder de uma letra que cospe na hipocrisia social de quem se julga superior, as imagens oferecem um complemento poderoso e impactante, como tornou-se especialidade de Madonna.
A presença de Mykkyi Blanco personificando uma versão transexual de Joana D’Arc, pronta para renascer da fogueira aonde foi tacada para vingar sua execução, traz um paralelo óbvio, mas ainda assim poderoso com o extermínio de vidas trans ao redor do globo.
Madame X, assim como sua criadora, pode ter e tem uma infinitude de títulos e personalidades. E, dentre todas elas, está a da Madonna que preferiu arriscar o sucesso comercial e o lucro para lutar pelo que acredita, sem jamais comprometer sua visão criativa, entregando nesse processo a iconografia que a coroou como a eterna Rainha do Pop.