Logo após a retificação do seu nome e gênero nos documentos, a Sargento Priscila Diana solicitou a atualização dos seus dados cadastrais na Polícia Militar de Santa Catarina, onde trabalha há mais de 20 anos, sem nunca ter tido nenhuma punição. Por ter solicitado inicialmente a inclusão do seu nome social, a resposta não veio a tempo e ela enfrentou dificuldades para ter seus registros atualizados na corporação.

Ser a primeira pessoa trans em determinados espaços tem disso: é motivo de grande orgulho, traz representatividade e visibilidade, mas ao mesmo tempo expõe estas pioneiras a uma situação que pode não ser muito confortável. Várias vezes, essa mesma posição as submete a um processo violento de ter que enfrentar as diversas formas de transfobias estruturais, motivadas tanto pela ausência do debate sobre diversidade de gênero quanto pela LGBTIfobia institucional. E isso tudo sem contar que, na maioria dos casos, elas têm que dar conta sozinhas do processo de naturalização das suas próprias existências trans nestes espaços.

Dentro de corporações militares, pessoas trans enfrentam ainda mais desafios, muito em parte pela falta de legislações que garantam seus direitos à permanência nos quadros de oficiais. Mas, assim como na sociedade, não existe nenhuma restrição legal que impeça policiais, membros da forças armadas ou de outras áreas da segurança pública de passarem pela transição de gênero e continuarem exercendo suas profissões.

Cabe aqui destacar que, desde 2018, por decisão do Supremo Tribunal Fedeal, pessoas trans podem solicitar a retificação de seus assentamentos no registro civil diretamente no cartório onde foram registradas, sem a necessidade de comprovarem seu gênero por laudos médicos, psicológicos ou cirurgias de readequação.

Mesmo após apresentar sua nova certidão de nascimento e um requerimento formal solicitando a mudança do seu nome nos registros da corporação, Priscila teve uma resposta negativa da instituição. E, por se tratar do primeiro caso na história da Politica Militar de Santa Catarina, fundada em 1835, uma série de questões foram levantadas sobre a sua permanência e o respeito à sua identidade de gênero a partir da necessidade de adequação em situação funcional.

Diante da negativa, ela decidiu buscar ajuda. E toda essa movimentação gerou um debate importante sobre como a sociedade vem tratando as pessoas trans e a nossa luta pelo direito à empregabilidade, assim como o nosso acesso ao mercado formal de trabalho.

Militar dedicada, a sargento afirma já ter trabalhado em diversas áreas na PM sem nenhuma dificuldade e chegou a comandar um grupo tático dentro da instituição. Ainda assim, Priscila precisou lutar pelo direito de seguir desempenhando sua função. E mesmo que demonstrasse aptidão para o cumprimento de suas atribuições, em certo momento ela chegou a ser afastada do cargo e chegaram até a sugerir que aceitasse ser tratada no masculino para poder continuar trabalhando.

À Hibrida, Priscila Diana conta com exclusividade como vivenciou o processo de transição de gênero dentro e fora da Polícia Militar, a influência que isso teve no relacionamento com seus colegas de batalhão e discute também a relação da PM com a comunidade LGBTQ. Ao mesmo tempo, ela demonstra que a condição trans não é impeditivo para nenhuma função, seja ela civil ou militar.

Há mais de 22 anos na PM de Santa Catarina, Sgta. Priscila Diana diz: "A convivência diária com uma pessoa transgênera vai mudando a visão preconceituosa que algumas pessoas têm" (Foto: Arquivo Pessoal)
Há mais de 22 anos na PM de Santa Catarina, Sgta. Priscila Diana diz: “A convivência diária com uma pessoa transgênera vai mudando a visão preconceituosa que algumas pessoas têm” (Foto: Arquivo Pessoal)

HÍBRIDA: Há quantos anos você está na instituição? E qual função desempenha na corporação?

PRISCILA DIANA: Estou há 22 anos na Polícia Militar de Santa Catarina, sou 3º Sargento e sempre trabalhei na área operacional, atuando como Comandante do Policiamento Ostensivo. Atualmente, estou trabalhando na reserva de armamentos, onde faço o controle e manutenção dos equipamentos utilizados pelos policiais.

H: Por que você decidiu entrar na Policia Militar?

PD: Minha família já tinha vários polícias e militares, em várias corporações, e isso acabou influenciando. Também sempre tive um senso de justiça muito forte, o que pesou na escolha.

H: Como se deu o processo de transição dentro da policia? Foi tranquilo?

PD: Meu processo de transição na Polícia foi relativamente tranquilo, porque foi de forma gradativa. Minhas mudanças corporais se deram ao longo dos anos, o que acredito ter sido menos impactante. Como a maioria das trans, comecei minha hormonização por conta própria, o que é errado, e só depois passei por uma cirurgia de feminização facial. Após alguns anos que comecei a ter acompanhamento médico e psicológico adequados.

O fato também de ter um bom relacionamento com meus colegas de trabalho pesou muito, porque a maioria deles levou em consideração essa nossa relação construída anteriormente. Por incrível que pareça, o maior preconceito que passei foi fora da PM-SC, entre a família e antigos amigos.

Meu maior desafio foi o medo e a incerteza de como seria esse processo. Não sabia se tentariam me reformar ou se haveria retaliação

H: Quais os maiores desafios você encontrou neste processo? Qual foi a reação dos seus superiores no primeiro momento?

PD: Meu maior desafio acho que foi o medo e a incerteza de como esse processo iria ocorrer. Não sabia se tentariam me reformar ou se haveria algum tipo de retaliação. Meus superiores, para minha surpresa, me trataram com respeito e aceitaram bem. Porém, como se tratava do primeiro caso em Santa Catarina, ficaram meio perdidos em como lidar com a situação, tanto na esfera jurídica, como em relação à incerteza de como a tropa iria reagir. Mais tanto meus superiores diretos, como o Comando Regional e o Comando Geral, em momento algum demostraram preconceito ou não aceitação.

H: Como a instituição reagiu em relação à sua permanência? Qual foi o posicionamento oficial da PM-SC?

PD: A PM-SC, ao receber oficialmente minha comunicação pedindo a utilização do nome social, bem como a utilização de banheiros e alojamento condizentes com meu gênero reconhecido, encaminharam minha solicitação a assessoria jurídica da corporação. Após um longo estudo, eles reconheceram meu direito ao uso do nome social e à utilização dos espaços condizentes ao meu gênero.

Esse parecer foi acolhido pelo comandante geral, que atendeu meu pleito de forma muito profissional. Como também tive uma aceitação muito boa de meus colegas de trabalho, isso ajudou muito. Mas posso dizer que o posicionamento da corporação foi muito legalista, como era de se esperar. Ou seja, se é um direito reconhecido, a Polícia tem que dar o exemplo nesse cumprimento.

H: E como as coisas foram resolvidas?

PD: Mesmo antes de sair a decisão, a Polícia Militar se preocupou em preparar a tropa, organizando palestras com especialistas em gênero e sexualidade e esclarecendo duvidas sobre o tema. E isso ajudou muito. Após a decisão favorável, a volta se deu de forma muito natural.

O profissionalismo prevaleceu acima do preconceito. É claro que a transfobia sempre vai existir, porém ela se nota mais de forma velada e muito menor do que eu imaginava

H: Hoje, você se sente parte (incluída e bem recebida) da corporação e confortável no desempenho da sua função atual?

PD: Sim, me sinto incluída e bem recebida, tanto pelo meus colegas como por meus superiores. O profissionalismo, que sempre foi uma marca da PM-SC, prevaleceu acima do preconceito. É claro que a transfobia sempre vai existir, porém ela se nota mais de forma velada e muito menor do que eu imaginava.

H: Qual a sua relação com outros militares?

PD: Minha relação com meus colegas de trabalho é de respeito, até porque no meio militar a hierarquia e a disciplina são conceitos muitos fortes. Como sempre, fui uma profissional exemplar e ativa operacionalmente, isso pesou muito.

A convivência diária com uma pessoa transgênera vai mudando a visão preconceituosa que algumas pessoas têm em relação à população trans

H: Hoje, a instituição respeita a sua identidade de gênero e seu nome social, assim como os espaços segregados por gênero. De que forma isso pode representar uma mudança de entendimento sobre a transfobia institucional?

PD: A decisão da assessoria jurídica, bem como do comando geral, foi de reconhecer oficialmente tanto minha identidade de gênero quanto a utilização do nome social e o direito à utilização dos espaços coerentes ao meu gênero feminino. E, na prática, isso foi respeitado pela corporação e pelos policiais. Sou tratada pelo meu nome e gênero de forma muito natural, posso assim dizer.

Com relação à transfobia institucional, acredito que a convivência diária com uma pessoa transgênera vai mudando a visão preconceituosa que algumas pessoas têm em relação à população trans. Hoje, ocupamos espaços antes jamais imagináveis e as pessoas estão vendo, através desses exemplos, que a convivência é possível e muito importante para o crescimento de uma sociedade mais inclusiva. Já se sabe que as várias diversidades dentro de uma empresa ou corporação trazem muito mais crescimento e produtividade.

H: Você contou com ajuda de alguém neste processo? Qual a importância da atuação destas pessoas/instituições para o fortalecimento de sua luta dentro da PM-SC?

PD: Sim, tive a sorte de contar com a ajuda de muitas pessoas e instituições nesse processo. O pessoal do Centro de Pesquisa e Atendimento a Travestis e Transexuais (CPATT), em Curitiba, que me deu suporte médico e psicológico para poder enfrentar essa luta. Também tive ajuda imprescindível da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), em especial através de minha amiga amada Bruna Benevides, assim como da Aliança Nacional LGBTI, através do Dr. Marcel Jeronymo e de meu advogado, Dr. Marcelo Wancheleski, que de forma voluntária está me ajudando muito. Poder contar com uma estrutura dessas foi essencial nessa luta.

Priscila Diana: "As pessoas têm medo daquilo que não conhecem e existem muitos tabus e estigmas sobre nós"
Priscila Diana: “As pessoas têm medo daquilo que não conhecem e existem muitos tabus e estigmas sobre nós”

H: A PM é uma instituição de Segurança Pública. Você acha que ter uma mulher transexual no dia a dia da corporação pode trazer alguma mudança na forma com que ela lida com o cumprimento de sua função? É possível pensar que sua presença ajude a modificar a forma com que a PM vê e trata as pessoas trans?

PD: Acredito que sim. A convivência com uma mulher trans vai quebrar muitas ideias já formatadas que muitas pessoas têm. O fato de a PM-SC já estar fazendo palestras sobre o tema para seus policiais demostra que essa mudança é possível. Claro, isso é um processo longo e acredito que minha função seja também de ajudar nessa nova perspectiva.

H: Como você acredita que pode contribuir para o enfrentamento da transfobia institucional?

PD: Os exemplos ajudam muito. Se você demonstra competência e respeito, acredito que pode ser a melhor forma de contribuir para o enfrentamento da transfobia. As pessoas têm medo daquilo que não conhecem e existem muitos tabus e estigmas sobre nós. A partir do momento que passam a nos conhecer, esse medo vai se dissipando. A própria palavra já define a fobia como medo, e a fobia se combate também com conhecimento. Em especial a transfobia.

H: Acha que a instituição está preparada para receber outras pessoas trans? Por quê?

PD: Talvez preparada ainda não, mas se as pessoas trans não ocuparem esses espaços, acredito que por si própria a instituição não vai se preparar. É algo novo, como meu próprio caso demonstra, e mudanças levam tempo, especialmente em instituições seculares. São pequenos passos que devemos trilhar não só na Polícia, mas em todos os segmentos da sociedade.

Em uma sociedade que ainda exclui ou ignora as minorias, se não houver união não chegaremos a lugar nenhum

H: De que forma a instituição pode contribuir para o enfrentamento da transfobia na atuação dos PMs e diminuir os índices de violência policial contra pessoas trans?

PD: Informação é tudo. Através de palestras, como a que já ocorreu, nossos policiais passam a ter uma visão mais ampla das particularidades humanas, pois o preconceito não se dá somente com as pessoas trans, mas também com o negro, o autista, o pobre, o indígena etc. Então, analisando, acredito que informação é tudo e nós, que estamos inseridas tanto nas polícias como nos demais setores da sociedade, temos a obrigação de ajudar levando informação a todos os lugares. É uma luta de todos nós.

H: Qual o maior aprendizado que você tira deste episódio para sua vida pessoal?

PD: O maior aprendizado que tive foi que sozinhos não somos nada. Em uma sociedade que ainda exclui ou ignora as minorias, se não houver união não chegaremos a lugar nenhum. O fortalecimento das instituições sociais é essencial nessa luta.

H: Qual recado  que você deixaria para as outras pessoas trans que querem seguir a carreira militar, seja na PM ou em outra instituição?

PD: Em primeiro lugar, acredite que seus sonhos são possíveis. Estude, se prepare, aprenda sobre seus direitos, conheça as instituições que lutam por você e ajude a fortalecê-las. E, se quer ser policial, lembre-se que deve ser exemplo e sempre buscar a justiça e a igualdade.

H: E qual seu maior sonho?

PD: Meu maior sonho é que um dia as pessoas trans tenham suas existências naturalizadas. Não queremos igualdade, queremos equidade. Sem vantagens ou desvantagens. Que tenhamos um mundo mais justo e igualitário, onde todos tenham oportunidades. Pode ser uma utopia, mas os sonhos começam a virar projetos dentro dos nossos corações.

Uma amiga disse: já que vai brigar com o mundo, coloque o nome Diana, em referência à Mulher Maravilha

H: Deixamos esse espaço abaixo livre para você escrever o que desejar.

PD: Eu nasci em uma cidade pequena do Paraná, mas minha família é do Rio Grande do Sul. Descobri ainda criança minha condição, mas na época ainda não existia muita informação sobre o que era a disforia de gênero. Cresci sempre sabendo que era mulher, mas demorei um pouco a iniciar minha transição por essa falta de informação e pelo medo de vir de uma família bem tradicionalista.

Minha transição foi gradativa por eu já estar na Polícia Militar. Na polícia, sempre exerci minhas funções de forma honrosa, me destacando e inclusive me aperfeiçoando, trabalhando em grupos táticos de missões mais graves. Fiz nivelamento na Força Nacional de Segurança Pública, quando atuei no Rio de Janeiro.

Tive grandes conquistas nesse ano, assim como muitas outras meninas e meninos trans, que foi minha retificação de nome para Priscila Diana, vindo a Diana se tornar meu nome de guerra militar (Sgt. Diana). Esse meu segundo nome foi sugestão de uma amiga trans. Em uma brincadeira, ela disse: já que vai brigar com o mundo, coloque o nome Diana, em referência à Mulher Maravilha. Entrei na brincadeira e disse que ia acrescentar isso no meu registro.

Mas minha maior conquista foi o reconhecimento da PM-SC. Desilusões tive aos montes, mas cada vez que caio sei que devo levantar mais forte por mim e pelas minhas outras irmãs. Hoje, quero aprender mais e mais com pessoas que são exemplos para mim. como minha diva Bruna Benevides. (risos)