Não é fácil lançar, manter e seguir com uma revista independente “de nicho”, como é o caso da Híbrida, pelo menos sob a ótica da comunicação. O jornalismo em si não é fácil, e quando você precisa alinhar suas práticas de apuração e escrita à promessa de um ideal em favor da pluralidade, mesmo dentro desse determinado “nicho”, o desafio é constante e se prova crescente a cada dia. Tudo isso fica ainda mais complexo e trabalhoso no meio de uma pandemia que desafia sua profissão, seus pares e coloca a comunidade LGBTQ na qual você está inserida em uma exposição mais brutal de vulnerabilidade do que antes.

Como jornalista, me faltam dados, pesquisas e levantamentos oficiais para afirmar com a precisão que a profissão me exige o tanto que LGBTs foram afetados pelas medidas de isolamento social, pelos desfalques econômicos e pela constante exposição ao discurso de ódio que enche nossas redes e nossa capital federativa. Como homem gay, entretanto, eu sei bem onde esse calo aperta.

Muitos de nós crescemos em lares onde não somos aceitos da forma como nos enxergamos, queremos e merecemos. A história de LGBTs que precisaram abandonar o lar de forma compulsória para que conseguissem viver de forma digna é uma constante e afeta todas as letras dessa sigla, mais notoriamente a população T, dentre a qual 90% tem ou já teve a prostituição como fonte principal de renda. Como já mostramos aqui, muitas dessas pessoas estão entregues à ajuda da própria comunidade, sem acesso aos poucos benefícios que o governo federal concedeu até o momento.

Todo esse contexto permeia a edição que lançamos agora, em junho de 2020, pleno mês do Orgulho LGBTQ. Confesso, o tema “INFLUÊNCIA” vem ocupando minha mente há muitos meses, antes de a Covid-19 ter sequer aparecido na província de Wuhan. Mas se a minha proposta era subverter o significado com o qual a palavra se assemelhou nos últimos anos, principalmente na versão infuencer, nada melhor que trazer essa discussão para o agora, quando sentimos a urgência de ressignificar conceitos e práticas mais até do que antes.

Capa da Híbrida, Edição #5 - "INFLUÊNCIA" (clique para ler)
Capa da Híbrida, Edição #5 – “INFLUÊNCIA” (clique para ler)

Para pensar os temas que abordaríamos na edição, parti do meu próprio problema com a palavra influencer e com quem tem se apropriado desse título, exercendo uma influência irresponsável, rasa e, na maior parte do tempo, com estilos de vida e padrões de beleza irreais. Ainda na nossa primeira edição, alertamos para a forma como a extrema-direita tem financiado think tanks pelo mundo afora, disfarçando esse agentes como “formadores de opinião”. Mas o poder que damos às opiniões do outro, os ícones que elegemos e a forma como isso nos afeta dentro da própria comunidade LGBTQ ainda precisa ser questionado.

Desde muito cedo, aprendi a baixar o tom da minha voz, andar devagar e controlar cada passo e movimento do meu corpo para não expor o que eu realmente era aos outros. Voltando da escola, não era raro caminhar dois ou três quilômetros a mais para contornar as ruas onde os meninos da minha idade se divertiam me jogando lixo, pedras e terra na cabeça.

Isso tudo aconteceu primeiro em Manhumirim, cidade com uns 20 mil habitantes onde nasci, no interior de Minas Gerais. Depois, quando me mudei para Caratinga, município um pouco maior do que o anterior onde me deparei com a mesma carência de pessoas e espaços LGBTs que me garantissem, se não apoio, pelo menos a certeza de que não estava sozinho com esse problema.

Durante minha entrevista com Aretuza Lovi, que estampa a capa dessa edição, percebi que ela passou pelos mesmos empecilhos de quem cresceu no interior (ela, em Goiás). E, assim como no meu caso, as agressões sofridas por Arê também não se limitavam à rua, mas se estendiam até em casa, pelas próprias pessoas que deveriam protegê-la.

Aretuza Lovi fotografada para Revista Híbrida (clique para ler a entrevista)
Aretuza Lovi fotografada para Revista Híbrida (clique para ler a entrevista)

Aretuza dá um depoimento íntimo, sincero e extremamente vulnerável nessa entrevista, contando não só a forma que encontrou para superar esses obstáculos, e muitos outros ao longo dos anos, mas também das delícias e do sentido de pertencimento ao se encontrar em uma comunidade de pessoas parecidas com ela. Durante a nossa conversa, comentamos o quanto as novas gerações já enfrentam uma sociedade mais preparada para lidar com as diferenças, mesmo que ainda muito longe do ideal.

Outro ponto importante abordado na entrevista é a enxurrada de críticas que ela recebeu após ter participado de uma live cujo objetivo era arrecadar doações para instituições LGBTs (inclusive, veja aqui uma lista de casas de acolhimento que estão precisando de doações durante a pandemia). Muitos dos comentários que chegaram a Aretuza vinham de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais sugerindo que ela tirasse a própria vida ou chegando ao cúmulo de atacar seu filho, de apenas seis anos.

É preciso termos cuidado e vigilância constante para não deixar que críticas profissionais ultrapassem a linha do discurso de ódio, não em um momento onde precisamos fortalecer ainda mais o sentido de comunidade entre nós mesmos. O poder do anonimato nas redes sociais alinhado ao artifício de disfarçar xingamentos com a máscara da “opinião” deve vir sempre acompanhado da consciência do tanto que palavras podem influenciar o outro, mesmo que ele ocupe um lugar que, a princípio, nos pareça inatingível e onipotente.

A destilação desse mesmo hate encarado por Aretuza encontrou em Victor Hugo Teixeira uma das suas principais válvulas de escape no início do ano. Durante sua participação no Big Brother Brasil, o psicólogo não sucumbiu só à pressão da casa, mas ainda teve que lidar com uma visibilidade repentina que o catapultou ao centro de um tornado no qual até sua sexualidade foi atacada.

Fora do aquário com Victor Hugo Teixeira (clique para ler)
Fora do aquário com Victor Hugo Teixeira (clique para ler)

Apesar das críticas e alertas, essa edição também celebra e simultaneamente questiona quem tem usado seu poder de influência para agir diretamente em conceitos básicos da nossa própria comunidade e, por que não, da sociedade geral. Rita Von Hunty, por exemplo, explica em sua entrevista como tem usado sua os seguidores em suas plataformas para povoar com fatos e bom humor uma rede social dominada por discursos sem fundamentos.

(clique para ler a entrevista com Rita Von Hunty)
(clique para ler a entrevista com Rita Von Hunty)

Já em uma análise impecável e inquietante sobre o poder que as divas do pop exercem sobre LGBTs, principalmente sobre os gays, o jornalista Victor Miranda questiona até que ponto deveríamos nos guiar ou nos deixar convencer pelo ativismo que elas vendem com suas marcas. Sem tirar mérito e mais como provocação que acusação, ele não propõe soluções simplistas, mas nos convida a repensar algumas certezas, rever nosso próprio comportamento e reconsiderar devoções.

Particularmente, ainda não conheci um gay que não tivesse uma diva para chamar de sua. De Beyoncé a Gaga, de Madonna a Judy Garland, de Ivete Sangalo a Marília Mendonça, mulheres fortes parecem exercer uma fascinação quase divina no nosso subconsciente. Lembro perfeitamente bem do sentimento de libertação que senti quando me deparei com o primeiro vídeo de Britney Spears na MTV. Alguma coisa sobre a forma como ela se movia nos clipes e no palco, sem vergonha do próprio corpo ou sexualidade, abriu uma válvula de escape na minha cabeça. Nos anos que se seguiram, peguei emprestada a autoconfiança de Britney e outras incontáveis popstars, que abafavam o ruído do mundo exterior através do meu fone de ouvido.

O culto às divas pop e a captura da luta política (clique para ler)
O culto às divas pop e a captura da luta política (clique para ler)

É triste pensar que a pandemia do coronavírus tem nos roubado até essa alegria singela de celebrarmos a música, a arte e nos reunirmos em locais onde nossa individualidade e coletividade são respeitadas e bem-vindas. Mais ainda, no mês de maior validação da nossa existência, quando nossas Paradas do Orgulho estão sendo canceladas, adiadas ou transportadas para o mundo online. Não à toa, Pedro Paiva busca entender como essas marchas começaram no Brasil e o que elas significam hoje, depois de terem passado pelas opressões da Ditadura Militar e pelas mortes da epidemia do HIV.

Paradas do Orgulho: democratização e celebração da luta LGBTQ (clique para ler)
Paradas do Orgulho: democratização e celebração da luta LGBTQ (clique para ler)

Por sinal, a história do Vírus da Imunodeficiência Humana e da Aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) é resgatada em uma extensa pesquisa feita por Luiz Guilherme Osório, neste que marca o 100º ano desde que a doença foi encontrada em seres humanos pela primeira vez. Como fica claro na matéria, a Covid-19 não é a primeira pandemia em que LGBTs são expostos a mais vulnerabilidade. Mais interessante ainda é se deparar com a diferença no tratamento que o coronavírus e a “peste gay” tiveram, seja pela comunidade internacional, pelos órgãos federais ou pela própria mídia.

100 anos após o início do HIV (clique para ler)
100 anos após o início do HIV (clique para ler)

Todo o expediente dessa edição foi pensado para que refletíssemos sobre o verdadeiro conceito de influência, por meio de pessoas, acontecimentos e ideias que foram direta ou indiretamente responsáveis pela configuração na qual nos encontramos hoje ou que estão dispostos a mudá-la de alguma forma. Assim, fica imprescindível a leitura e escuta do que Jup do Bairro tem para falar e cantar.

Ao longo de sua entrevista, Jup aponta a diferença de tratamento pelo mercado fonográfico entre artistas como ela e outros nomes mais comuns ao mainstream, que atendem a um padrão independente da sexualidade ou do gênero. Ela propõe novas alianças para mudar esse sistema, narrativas mais plurais para ampliar o escopo de representatividade ofertado e denuncia como o mundo está vivendo agora o que corpos marginalizados como o dela enfrentam desde sempre.

Entrevista Jup do Bairro (clique para ler)
Entrevista Jup do Bairro (clique para ler)

Por fim, mas não menos importante, temos dois depoimentos fortes e necessários que ilustram ainda mais o universo dessa edição. Paulo Iotti, um dos advogados responsáveis pela criminalização da homotransfobia pelo STF, reflete sobre o julgamento histórico de um ano atrás e aponta novos caminhos a serem tomados para reforçar a nossa garantia sobre esse direito.

Artigo: a inclusão da homotransfobia na lei antirracismo (clique para ler)
Artigo: a inclusão da homotransfobia na lei antirracismo (clique para ler)

Em sua estreia da Bixa Preta na revista (e não apenas no site), Tiago Bastos entrevista Vinícius Monteiro, morador de Padre Miguel. Dentre as muitas coisas que a covid nos tirou em junho, as quadrilhas estão entre elas. Em seu depoimento, Vinícius, que tem um histórico de se apresentar nesses eventos, além de colaborar com a G. R. E. S. Acadêmicos do Salgueiro e trabalhar como trancista, conta como tem se virado nesses tempos de isolamento.

Bixa Preta: Vinícius Monteiro (clique para ler)
Bixa Preta: Vinícius Monteiro (clique para ler)

Espero que você, leitor ou leitora, se permita mergulhar no conteúdo que estamos propondo e, mais que isso, usá-lo como ponto de partida para seus próprios questionamentos. Até porque, se não mudássemos como sociedade, a Híbrida, essa edição e até o texto que você acabou de ler não teriam espaço ou motivo para existir.

– João Ker, editor-chefe