A arte drag, como bem define Rafael Paes, de 27 anos, pode ser descrita como um “compilado de talentos”, onde cabelo, maquiagem, humor e performance dão a base para o que será definido individualmente a cada caso, como especializações em dança, comédia, concursos, dublagens e música. Nessa última categoria, Frimes, a persona criada pelo jovem de São Luís, no Maranhão, não se destaca apenas pela sonoridade singular, mas pela autonomia de produção. É ela quem compõe, grava e produz faixas como Big Fat Dick” e “Sexy Hot”, além de assinar também a produção, direção e edição de vídeos, como o mais recente “XOXO”.

“Sinto que a minha vida inteira venho estudando pra isso”, analisa a artista durante uma conversa por telefone com a Híbrida. Morando “desde sempre na Ilha do Amor”, como ela mesma diz, Frimes praticou ginástica artística durante 10 anos de sua vida e, mais tarde, estudou Teatro na Universidade Federal do Maranhão (Ufma). A música, entretanto, é uma paixão de família e já veio no sangue, pelo avô compositor e o pai que era saxofonista.

Foi através dela que Frimes, ainda Raphael, começou a se aventurar pelo mundo artístico, com o projeto Pornografairy. “Meu pai já tinha falecido e não tinha como me passar os conhecimentos dele. Encontrei um software na internet e aprendi tudo sozinha quando comecei a me interessar por música”, conta.

Ali ele deu os passos iniciais para o que mais tarde seria a estética visual e sonora de sua drag, com o mesmo software que usa até hoje e a ideia de dualidade entre o meigo e assustador que potencializou por com perucas, salto alto e make. “Sou geminiana, sempre tive essa coisa dúbia”, ri. “Principalmente no meu humor e na minha sexualidade. A identidade da Frimes é fofinha e de rosinha, mas ao mesmo tempo agressiva e bizarra. É algo que sempre tive comigo e acentuei nela.”

Alice Frimes nasceu quando Rafael abandonou a faculdade por problemas pessoais e descobriu em “RuPaul’s Drag Race” seu processo de cura e sua fonte de inspiração. “Comecei a assistir [o programa] de forma visceral e a experimentar maquiagem em casa. Certo dia, estava sozinha em full drag“, relembra. Para o batismo, “Alice” veio emprestada da personagem de Natalie Portman em “Closer” (Mike Nichols, 2005) e Frimes como uma homenagem à cantora e hoje primeira-dama da Tesla, Grimes, já que o F é “uma letra antes”, alude a Fada e o nome lembra frames de vídeos.

“Quando saí da universidade, comecei a ser provocado por esse corpo mais feminino, esse lado mais performartivo. Tive um processo de descoberta da identidade muito grande. Sempre me interessei muito na vida noturna, em strippers e todas as personagens femininas que são altamente poderosas e donas de tudo, sabe? “, explica Rafael.

Além do nome, Grimes também foi inspiração de alguém “que faz tudo e é muito autodidata” dentro da música. Misturando um caldeirão de influências com como Sophie, Ayesha Erotica, Slayyter, Cyberkills, Mia Badgyal e até Enya, ele criou a fórmula que elevaria Frimes do witch house produzido antes à fusão entre eletrônica, PC Music e pop de músicas de hoje.

Em “Pink Money”, por exemplo, ela critica a forma como marcas e empresas se apropriam do público LGBTQ para venderem uma “falsa sensação de que estamos evoluindo”. “Ser poc é a nova sensação”, define, antes de questionar: “É vampirismo ou é apoio?”. “Quando lancei ‘Fadinha’, a aceitação foi boa, mas com críticas construtivas sobre a letra. Acho que as pessoas não entenderam a ironia do que eu queria realmente criticar, então resolvi escrever algo mais consistente e maduro, mas com a minha identidade”, explica.

Apesar do incômodo com a exploração e de entender que “as empresas que te dão a mão te esfaqueiam por trás”, Frimes apresenta a mesma dubiedade geminiana quando o assunto é pink money. “A gente acaba apoiando mesmo sem querer, na ilusão de que é genuíno. Somos todas prostitutas, vendemos nosso corpo e trabalho de alguma forma. Quando essas empresas nos patrocinam, a gente acaba passando um paninho e, talvez se fosse eu, faria a mesma coisa.”

A declaração é compreensível, uma vez que mesmo com o boom comercial e mainstream de nomes como Pabllo Vittar, Gloria Groove e Aretuza Lovi, drag queens brasileiras raramente recebem o devido reconhecimento midiático e financeiro que merecem. Fora do eixo Rio-São Paulo, então, ou mais especificamente na capital maranhense, ganhar a vida fazendo o que gosta, quando isso é arte, se torna um desafio ainda mais difícil.

“Ser drag é caro e as pessoas querem pagar R$ 150 para você sair de casa e passar a noite toda em pé. Para conseguir lucrar com isso, precisa ser DJ também, porque aqui não tem cultura do lip synch nem festas que produzem isso. Também não somos contratadas nem como hostess de eventos. O quesito financeiro é muito fodido”, afirma.

Ainda que de forma independente, Frimes tem conseguido entregar com seu trabalho produções de orçamento zero, mas criatividade a mil, com clipes que não deixam a desejar em nada quando comparados com outros de artistas maiores ou até internacionais, muitos apoiados por verba de gravadora. “Temos uma rede muito legal de compartilhamento aqui, sempre fazemos parceria com fotógrafos e nos ajudamos. A maioria dos vídeos é feita de forma coletiva”, explica.

Um dos poucos trabalhos remunerados que ela conseguiu recentemente foi no filme “De Repente Drag”, da diretora Rafaela Gonçalves, produzido com ajuda do Fundo Setorial do Audiovisual pelo edital da Ancine que Jair Bolsonaro tentou censurar sem sucesso. No longa, que já está em pós-produção, Frimes trabalhou como atriz, produziu artes e ajudou compôs a trilha sonora, com uma música original que será interpretada por Silvero Pereira.

Além da constelação no elenco, que ainda tem Pepita, Potyguara Bardo, Silvetty Montilla e Kaya Conky, o projeto também movimentou a cena LGBTQ de São Luís e empregou drag queens na figuração, maquiagem, figurino etc, priorizando sempre profissionais maranhenses. “Foi uma luz divina que me presenteou com um computador potente e microfone”, comemora Frimes, contando que graças ao cachê conseguiu trocar a máquina que usava desde 2010.

Com a nova ferramenta de trabalho, ela tem aproveitado o isolamento social do coronavírus para produzir ainda mais do que antes. O último, “XOXO”, ganhou até um making of, pensado e editado por ela. “Às vezes tenho medo de soar meio prepotente, mas tenho feito cada vez mais as coisas sozinho, por n motivos. Uma música, em média, custa R$ 1200. Eu tenho todo esse conhecimento, só não tinha a ferramenta. Agora, tô no céu. Em quatro meses, aprendi a usar tudo, sou muito danada”, comemora.

Apesar de não se definir como extremamente ambiciosa, Frimes tem planos de gravar seu próprio EP ou álbum, estudar cinema e se consolidar como produtora musical. “Antes de fama ou sucesso, só quero levar uma vida estável. Minha maior pretensão é sobreviver do meu trabalho”, desabafa. Considerando tudo o que ela sabe fazer e ainda tem a oferecer, é bem provável que esse sonho não demore muito a se concretizar. “Bicha, eu dou mortal pra trás com um salto de 20 cm, juro. Ainda não tô rica porque sou burra.”