Híbrida
ARTE & LITERATURA

Enfim, Queermuseu! Por dentro das controvérsias da exposição

Muito aguardada, a“Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira” finalmente reabre neste sábado (18), nas Cavalariças da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV). Originalmente sediada no Santander Cultural, em Porto Alegre, a exposição foi censurada em setembro do ano passado. Sob a curadoria de Gaudêncio Fidélis, a remontagem no Rio de Janeiro levou cerca de 10 meses para ficar pronta e conta com 214 obras de 82 artistas, em um eixo cronológico que vai do começo do século XX até produções contemporâneas.

Histórico: a exposição se que tornou uma causa política para além do queer

Logo após o episódio de censura no Rio Grande do Sul, o Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR) demonstrou interesse em receber o projeto, ao que o prefeito Marcelo Crivella (PRB), em mais um ato de terror administrativo, vetou a produção, dizendo em um vídeo que tal evento só aconteceria na cidade “se fosse debaixo do mar”. O bispo, que sequer chegou a ver a exposição, reverberou o discurso difamatório que classificava as obras apresentadas como apologias à pedofilia, à zoofilia e à depravação moral.

Fachada das cavalariças do Parque Lage com a indicação para a "Queermuseu" (Foto: Ludimilla Fonseca | Revista Híbrida)
Fachada das cavalariças do Parque Lage com a indicação para a “Queermuseu” (Foto: Ludimilla Fonseca | Revista Híbrida)

Vale lembrar, inclusive, que uma semana depois desta proibição no MAR, a Secretaria Municipal de Cultura do Rio promoveu a mostra “Curto Circuito” – programação de visibilidade LGBT composta por exposições e peças teatrais, que deveria acontecer no Castelinho do Flamengo. Na véspera da estreia, a secretaria alegou uma pane elétrica no local e o evento foi cancelado. A atmosfera de censura pesou mais uma vez.

Somam-se a essas situações, os ataques constantes às religiões de matrizes africanas e o boicote ao carnaval carioca, entre outros atos autoritários por parte da administração do bispo. Foi então que o diretor da EAV, Fábio Szwarcwald, declarou à imprensa que o Parque Lage receberia a “Queermuseu”, como uma resposta política e de resistência ao cenário generalizado de repressão cultural.

Fábio Szwarcwald, diretor da EAV, e Gaudêncio Fidélis, curador da “Queermuseu”, durante coletiva de imprensa no Parque Lage (Foto: Gabi Carrera | Divulgação)

Na coletiva de impressa para a abertura da exposição, realizada na manhã de ontem, Gaudêncio manteve um tom fortemente político e iniciou sua fala dizendo: “Os setores mais progressistas da sociedade brasileira não aceitam o fato de que os princípios mais elementares da democracia tenham sido atacados”. Segundo o curador, a “Queermuseu” foi concebida como uma plataforma de ampliação do debate sobre gênero e sexualidade, e cada uma das questões propostas funciona como um ponto irradiador de discussões socioculturais. E foi por este motivo que ela teria alcançado tamanha repercussão. Em outras palavras, para ele, o barulho em torno da exposição se deve, sobretudo, à sua premissa curatorial e à sua densidade artística, e não “apenas” à censura sofrida.

Entretanto, Fidélis reconheceu em seguida que a sansão foi de uma gravidade sem precedentes, especialmente em um período pós-ditatorial: “O banco Santander, ao consumar o processo de censura e de fechamento da exposição, cometeu um crime contra a arte e a cultura brasileiras, cedendo às pressões de setores obscurantistas, especialmente grupos de caráter fundamentalista e fascista, como o MBL”.

“O jardim da oposição”

Há pouco mais de um ano na direção da EAV, Fábio Szwarcwald é economista e ex-vice-presidente do banco Credit Suisse. Seu perfil empresarial tem sido amplamente comentado na gestão do Parque Lage, que passa por diversas dificuldades econômicas (como, praticamente, todos os aparelhos culturais do Rio de Janeiro). Em dezembro do ano passado, por exemplo, ele promoveu um jantar beneficente e conseguiu arrecadar R$238 mil para a EAV.

Já no começo deste ano, para viabilizar a reabertura da exposição, ele organizou uma campanha de financiamento coletivo. Considerado o crowdfunding mais bem-sucedido do Brasil até agora, a campanha arrecadou mais de R$1 milhão. Além de configurar uma resposta (urgente e necessária) às sanções que a exposição vinha sofrendo, o movimento de EAV se tornar a nova sede do “Queermuseu” adquiriu, inevitavelmente, uma pitada de marketing institucional. Nada contra o marketing, até porque veio em boa hora. Trata-se apenas de uma ressalva que sempre deve ser feita quando a pauta envolve arte, política, atenção da mídia e burburinho nas redes sociais.

Julio Barroso, Gaudêncio Fidélis, Fábio Szwarcwald e Ulisses Carrilho durante coletiva de imprensa da “Queermuseu” no Parque Lage (Foto: Gabi Carrera | Divulgação)

Seja como for, todos estes fatores convergiram para que a reabertura da exposição se configurasse como um momento histórico de resistência que, inclusive, reafirma o DNA de militância da EAV em favor da liberdade de expressão e do livre exercício das artes. Vale lembrar que desde a sua criação, a escola livre do Parque Lage tem um perfil de emergência e radicalidade. Um de seus fundadores, Rubens Gerchman, considerava a EAV “o jardim da oposição”.

Quando perguntado sobre quais fatores teriam proporcionado o sucesso do financiamento coletivo, Fábio respondeu que as pessoas passaram a identificar o contexto como de ordem democrática, porque “ao se falar em censura, lembramos de ditadura militar”. O diretor acrescentou que muitos contribuintes não necessariamente se identificam com o meio das artes ou mesmo com a causa LGBT, mas perceberam a gravidade da situação política.

A prestação de contas com a discriminação de todos os gastos da produção da exposição estará disponível, em breve, no site da EAV.

“A teoria queer não pertence a ninguém”

Antes de ser atacada pelos conservadores de plantão e pelos robôs frenéticos das fábricas de fake news, a “Queermuseu” chegou a receber críticas de setores militantes do próprio movimento LGBT e de alguns segmentos da classe artística nacional. O curador Gaudêncio Fidélis foi acusado de usar o queer apenas como rótulo, distanciando este marcador de suas características inerentes de enfretamento, estranhamento, luta e reconhecimento.

Gaudêncio Fidélis, curador da “Queermuseu”, repudia a ideia de que a exposição seja ‘higienizadora’ (Foto: Raul Holtz | Divulgação)

Segundo as críticas, haveria na exposição uma “lógica integracionista e higienizadora”, pois sua seleção de obras não contemplaria a diversidade e a complexidade dxs artistas queer atuando no Brasil, dando mais visibilidade a artistas héteros, brancos e com carreiras consolidadas. O próprio fato de ter sido realizada em um espaço financiado por um banco seria problemático. Houve, inclusive, um protesto no dia da abertura em Porto Alegre, quando panfletos foram distribuídos reivindicando um posicionamento mais consciente da mostra e de seu curador.

Fidélis não recebeu bem as críticas (que, obviamente, foram eclipsadas no momento da censura). Quando perguntado a respeito durante a coletiva, ele se defendeu afirmando que “repudiava veementemente a ideia de que se trata de uma exposição higiênica” e que tais críticas não teriam nenhuma legitimidade, uma vez que “a teoria queer não pertence a ninguém, ela é um conhecimento”. O curador negou que a mostra seria uma mera ilustração da teoria queer, porque seria uma exposição contrastante e que levantaria múltiplos questionamentos, lançando luz sobre “outras correntes teóricas como o marxismo, o formalismo e o feminismo”.

A teoria queer não pertence a ninguém, ela é um conhecimento

– Gaudêncio Fidélis

E assim, Fidélis concluiu dizendo que quer “colocar uma pedra no assunto” e que a Queermuseu “inaugurou no centro da sociedade brasileira o mais extenso debate sobre gênero e sexualidade”. A declaração soou anacrônica, sobretudo e entre outras coisas, porque em 2018 celebramos os 40 anos do movimento LGBT no Brasil.

“Mais que a TRANSdisciplinaridade, interessa a indisciplina”

Paralelamente à mostra, está sendo promovido o Fórum Queermuseu, que compreende uma série de debates sobre a temática queer, envolvendo discussões não só sobre as identidades de gênero, as orientações sexuais e o reconhecimento da diversidade da arte brasileira, mas também em torno das manifestações culturais periféricas e do movimento contra a censura e a intolerância.

A coordenação do fórum é feita por Ulisses Carrilho, curador da EAV Parque Lage, que em um grande esforço de inclusão e de repensar as lógicas hegemônicas, conseguiu ampliar enormemente a pluralidade de agentes envolvidos na programação geral da “Queermuseu”. Entre os temas abordados estão a judicialização da arte, crenças e manifestações religiosas, liberdade e censura, fake news e, claro, teoria queer.

Além do fórum, foi constituído o Núcleo de Ação Educativa, pensado a partir de práticas e políticas queer com o objetivo de aprofundar os debates levantados pela comunidade LGBT ao longo da exposição. Carrilho lembrou que a “Queermuseu” está sediada em uma instituição cultural, que é uma escola e não um museu. E, sendo assim, “seu compromisso não está atrelado apenas com a itinerância do projeto e com a circulação de objetos artísticos ou com a integridade física das obras, mas em como pensar um projeto educativo dentro de uma escola”.

"Cruzando Jesus Cristo com o Deus Shiva" (1996), obra de Fernando Baril que integra a "Queermuseu" e foi taxada de "profana", em exposição no Parque Lage (Foto: Ludimilla Fonseca | Revista Híbrida)
"Adriano Bafônica e Luiz França She-há": obra de Bia Leite com "criança viada" que foi acusada de fazer apologia à pedofilia, em exposição no Parque Lage (Foto: Ludimilla Fonseca | Revista Híbrida)
Colagem de capas do jornal "Lampião da Esquina" (Foto: Ludimilla Fonseca | Revista Híbrida)

O Núcleo é formado por 29 pessoas que têm interesses e se dedicam a pesquisas em torno das identidades, sexualidades, erotismos e militâncias. Trata-se, portanto, de um “núcleo de microativismo”. Participam, por exemplo, a Casa Nem a partir de seu programa educacional, o “Prepara Nem”. Inclusive, todas as mediadoras da exposição, além da assistente de curadoria, Agrippina Manhattan, são mulheres trans.

Carrilho destaca a importância da presença destes “corpos vivos” atuando no projeto: “Não gosto de usar populações como objetos de pesquisa, mas como sujeitos”. Assim, ao convocar vozes que não estão habitualmente no Parque Lage e no circuito tradicional das artes, “a escola cumpre o papel não só de ensino, mas de aprendizagem”.

O curador cita ainda o exemplo do “Coletivo de Dissidências Sexuais” (Chile), que afirma que “mais que a TRANSdisciplinaridade, interessa a indisciplina”. Deste modo, as ações do programa educativo vão além, propondo atuações que vão desde de um novo sistema de identificação de gêneros nos banheiros da instituição até a reformulação da biblioteca, com a inclusão de novas obras literárias cujo propósito é dar conta desta diversidade de corpos dissidentes.

“Vamos do maracatu ao hardcore”

A “Queermuseu” conta ainda com uma intensa programação musical organizada pelo produtor e ativista cultural Júlio Barroso. As apresentações acontecem todos os finais de semana, enquanto a mostra estiver em cartaz.

O produtor destacou ainda que todxs xs artistas convidadxs são LGBTs e que, de alguma maneira, usam sua arte para militar. Os critérios de composição da programação também levaram em conta a variedade de gêneros musicais: “Vamos do maracatu ao hardcore”, ele declara, frisando também a valorização da cena musical independente, para além do circuito mainstream.

Caetano Veloso e Maria Gadú durante um dos “Levates Queer”, no Parque Lage (Foto: Vera Donato | Divulgação)

Barroso também foi o responsável pelos “Levantes Queer”, eventos realizados durante o crowdfunding para movimentar a campanha ao longo dos meses de arrecadação e chamar atenção para a causa. Entre eles, o show de Caetano Veloso com participações de Marisa Monte e Maria Gadú, o qual contamos aqui.

O produtor fez a colocação de que “estamos passando por um processo de criminalização não apenas da arte e da cultura, mas de criminalização dos corpos” e que é “fundamental resistir através da arte”.

Matheusa vive

Além de toda a programação da “Queermuseu”, quem visitar o Parque Lage terá uma surpresa: na antessala do salão principal, onde ocorrerão os debates, o curador Ulisses Carrilho organizou uma pequena mostra paralela da EAV.

São quatro obras de Matheusa Passareli, cuja execução em maio deste ano continua doendo. Ainda que muito jovem, a artista deixou um legado de resistência que ganha respiro nesta montagem, feita em colaboração com sua irmã, Gabe Passareli, que, inclusive, faz parte do Núcleo de Ação Educativa.

Obra de Matheusa Passarelli em mostra paralela, à mostra no Parque Lage (Foto: Ludimilla Fonseca | Revista Híbrida)

Há também uma atualização do trabalho “Safe Sex”, da artista Ana Matheus Abbade. Vale lembrar que Matheusa e Ana foram alunas da EAV. Completam a mostra, fotografias de Alair Gomes e uma obra de Simone Rodrigues (também professores da casa). Fechando, há um mural com edições do jornal “Lampião da Esquina” , o primeiro com temática gay no país e cujas reuniões costumavam acontecer no próprio Parque Lage.

Segurança e “recomendação de idade”

Antecipando possíveis novos ataques, além de seu efetivo habitual, a EAV Parque Lage contratou uma empresa de segurança, formada por mais 20 guardas, para garantir a tranquilidade no espaço expositivo e seu entorno. Também foram instaladas câmeras dentro das Cavalariças e em todas as entradas e saídas do parque.

“Recomendação de idade” exigida pelo Ministério Público, no Parque Lage (Foto: Ludimilla Fonseca | Divulgação)

A pedido do Ministério Público (e a contragosto da curadoria da escola), foram instaladas placas nas entradas da exposição com uma “recomendação de idade” (que é diferente de “classificação indicativa”). Ainda assim, Ulisses deixou claro que a EAV quer receber e incluir as crianças e adolescentes em todos os níveis da “Queermuseu”.

Museu provisório

De antemão, espera-se que a “Queermuseu” seja um sucesso de visitação. Mais que engrossar o caldo da resistência contra este período fascista que estamos vivendo, é preciso levar em conta as tensões artísticas que estão em jogo e a fruição das obras: quais potências o contexto expográfico é capaz de reverberar?

E, além de visitar a mostra, a participação nas ações educativas e culturais, isto é, o contato real com a diferença, também se faz necessário para ativar verdadeiramente todos estes debates.

A convergência de tantos fatores, simultaneamente apaziguadores e polêmicos, faz deste um momento histórico para a comunidade LGBT. E a Híbrida estará atenta a todos os desdobramentos. Acompanhe!

SERVIÇO
Exposição Queermuseu: 18/08 a 16/09 de 2018, de segunda a segunda.
Fórum Queermuseu: terças, quintas e sábados, durante toda a temporada da exposição.
Programação Gratuita.

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