Híbrida
Bixa Preta

Ramon Carvalho: “A sociedade nos massacra, mas não estamos sozinhos”

Ramon Carvalho, Bixa Preta figurinista, DJ, artista e stylist, diretamente do Vidigal (Foto: Arquivo Pessoal)

Quero iniciar com vocês uma coluna. Não uma simples coluna, mas um espaço aberto que vamos manter aqui na Híbrida sobre ser bicha. Na verdade, sobre ser BIXA PRETA. A cada edição, vocês irão conhecer uma Bixa, Preta e de distintas áreas de atuação. Nosso primeiro convidado é Ramon Carvalho.

Aos 27 anos, Ramon é stylist, DJ residente da Lafon, artista têxtil e aderecista. Em 2014, ele entrou para o universo do figurino como estagiário na novela “Meu Pedacinho de Chão”, da Rede Globo, onde trabalha até hoje desenvolvendo técnicas de tingimento têxtil , pintura, envelhecimento de roupas e acessórios, entre outros.

Pelo Coletivo OS3, participou da exposição “BALCONADAS – OBRA AL EXTERIOR” na VII Bienal Internacional de Arte Têxtil Contemporânea, em Montevidéu, com a obra “SPUCCINIK”. Há cinco anos, Ramon também trabalha como ilustrador para a escola de samba Grêmio Recreativo Bloco Carnavalesco Acadêmicos do Vidigal. Atualmente, ele também prepara o lançamento de sua própria marca autoral.

Ramon também é Bixa, Preta e residente do Vidigal, na Zona Sul do Rio de Janeiro, cidade que pode ter suas belezas e jeitinho receptivo, mas também é um dos lugares mais hostis para nós. Aqui, cada dia se torna uma experiência diferente, em que a tolerância e o respeito nem sempre são os cartões de visita que recebemos.

Com isso em mente, gostaria de fazer algumas perguntas pensando nessas questões.

Ramon Carvalho: "Temos que provar muitas coisas para a sociedade e para nós mesmos, todos os dias" (Foto: Arquivo Pessoal)
Ramon Carvalho: “Temos que provar muitas coisas para a sociedade e para nós mesmos, todos os dias” (Foto: Arquivo Pessoal)

Tiago Bastos: Ramon, fico contente por aceitar participar dessa coluna para a Híbrida. Como é o Ramon hoje, pensando no ambiente que vive, trabalha e se relaciona?

Ramon Carvalho: Sou um artista que está sempre em movimento, que circula por todos (ou quase todos) os lugares, do mais pobre ao mais rico. Nesse caminho, vejo desigualdades, injustiças, racismo, elitismo, LGBTfobia e brigas, coisas que me deixam muito triste. E isso me afeta demais.

Vejo também muitas famílias, sorrisos sinceros, esperança, felicidade, união, fé e sonhos. É essa parte que mais me inspira e me dá força nesse lugar que vivo. Sou um pouco workaholic, trabalho desde os 13 anos. Quando entrei na faculdade, precisei escolher entre o trabalho e os estudos. E, como boa parte dos jovens que nascem na periferia (e não têm papai e mamãe para bancar), escolhi o trabalho. Hoje, consigo conciliar minha carreira como artista têxtil, aderecista de figurino, DJ e stylist.

Penso que todo esse esforço pode ser uma luta pela sobrevivência. Em um sistema que mata tantos jovens negros e LGBTs, temos que provar muitas coisas para a sociedade e para nós mesmos, todos os dias.

Sou apaixonado pelo universo queer. Sinto que nesse lugar podemos ser quem somos, livres de toda essa caretice

TB: Se expressar da forma que queremos, seja na forma de se vestir ou agir, parece umas das tarefas mais difíceis quando pensamos na cidade em que vivemos. Como você enxerga isso?

RC: Realmente, é muito difícil. Com tanta violência, as pessoas são muito chatas e se preocupam demais com a vida alheia. Eu coloco muitos filtros mentais para me expressar da melhor forma, dependendo do lugar em que estou. Por isso sou apaixonado pelo universo queer. Sinto que nesse lugar podemos ser quem somos, livres de toda essa caretice.

TB: Quebramos padrões todos os dias na nossa sociedade. Para você, qual a importância dessa “liberdade do eu” e de sermos que realmente queremos ser?

RC: Para mim, a parte mais importante desse empoderamento é a desconstrução que isso traz para a sociedade. Em toda a história da humanidade, vivemos um padrão muito pesado, com muitas pessoas oprimidas, que foram mortas ou desistiram de suas vidas. Mas, graças a essas pessoas que bateram de frente com a sociedade no passado, chegamos a um lugar um pouco melhor. E, se continuarmos fazendo a nossa parte, o futuro será melhor ainda. É sobre se posicionar. Sem dúvidas, somos muito mais felizes assim.

Ramon: “A parte mais importante desse empoderamento é a desconstrução que traz para a sociedade” (Foto: Arquivo Pessoal)

TB: Na sua visão, quais os principais obstáculos na vida do jovem que está se descobrindo hoje?

RC: Acho que um dos principais obstáculos na vida desses jovens continua sendo a rejeição da família e a quebra de toda aquela expectativa heteronormativa que colocam na nossa cabeça desde criança. Eu, por exemplo, sou de família cristã e demorei muito para me aceitar, apesar de saber desde cedo o que eu era de verdade. Meu maior medo sempre foi ser rejeitado pela minha mãe, mas acabou que quando contei [sobre minha orientação sexual], ela disse que já imaginava. Hoje, temos uma relação ótima.

TB: Além de homossexuais, somos também negros, uma esfera a mais em nossa trajetória de vida. Você consegue ver diferenças de tratamento para os demais (seja classe ou raça) no ambiente em que vive?

RC: Existe MUITA diferença. Pessoas que correspondem a algum padrão (por serem brancas, ricas, heteronormativas ou qualquer outra coisa) têm muito mais acesso às oportunidades, são mais requisitadas, mais cuidadas e acabam tendo mais credibilidade nos lugares. É péssimo ver que nós estamos sendo sempre colocados como marginais por sermos LGBTs, negros e de periferia.

Já passei por quase todos os tipos de racismo no meu meio. Na maioria das vezes, situações que foram naturalizadas ou que as pessoas fingem não ver por acharem que não estão fazendo parte dessa opressão. Principalmente, quando o assunto é a desvalorização da nossa arte. E isso sem falar quando o racismo vem em tom de piada. É ridículo.

Ramon Carvalho: “Ramon Carvalho, Bixa Preta: “Estamos em uma sociedade que nos massacra, mas não estamos sozinhos” (Foto: Arquivo Pessoal)

TB: Realmente, a vida de uma Bixa Preta tem muitos casos e acasos, muitas questões de vida. É importante estarmos sempre a par dessa situação e fazermos isso que estamos fazendo, de compartilhar saber para os nossos. Por último, quero que me diga qual recado você daria para cada uma das Bixas Pretas que irão ler isso?

RC: Olhem para Dandara, Marielle Franco, Jorge Lafond, Marsha P. Johnson, Nina Simone, Frida Kahlo, Ruth de Souza, Grande Otelo, Abdias do Nascimento, Carolina de Jesus, Pixinguinha, José do Patrocínio, Machado de Assis, Tereza de Benguela e Antônio Francisco de Lisboa, o Aleijadinho. Lembrem-se deles quando estiverem triste ou desanimando, e pensem em como deve ter sido mais difícil para eles.

Estamos em uma sociedade que nos massacra, mas não estamos sozinhos. Carregamos conosco a força, a sede de justiça e a história de muitos que já se foram e deixaram seus legados, além de outros que nem tiveram tempo ainda. Toda essa energia nos protege e nos faz chegar em qualquer lugar. Acreditem nos seus sonhos e corram atrás deles com toda essa força. É o que eu estou fazendo.

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