A carreira musical de Podeserdesligado começou pelo acaso. Ele e um amigo percorriam as ruas do Rio à noite quando, à sua porta, em uma praia da Zona Sul, os dois fizeram uma descoberta: no lixo da vizinhança havia um velho teclado da Casio, um ctk-485. Sem pensar muito, Jhonatta Vicente o levou para seu apartamento. Sem bateria, o teclado ficou por meses no canto de sua kitnet, até Vicente eventualmente conseguir uma fonte. Um pouco depois, ele gravou sua primeira música com celular, colando as teclas do teclado com fita adesiva.
A descoberta do teclado, no entanto, não foi seu primeiro contato com a produção musical. Vicente cresceu em uma família evangélica na pequena cidade de Nova Friburgo, onde os cultos e louvores na igreja eram parte integrante de sua infância. Mais tarde, ele se mudou para estudar na Escola de Belas Artes da UFRJ. “Foi no Rio que tive meu primeiro contato com festas de música eletrônica”, diz o produtor de 31 anos.
A vida na nova cidade prometia liberdade não apenas em termos musicais, mas também na construção de sua própria estética. “Eu queria me afastar de toda essa opressão da cidade pequena”, explica Vicente. Com isso, ele quer dizer as restrições de sua casa, a homofobia e o racismo com os quais ele cresceu – e continua a enfrentar. “A igreja evangélica, onde cresci, é muito conservadora, sexista e misógina. As mulheres não têm permissão nem para cortar o cabelo “, observa.
As comunidades evangélicas têm desfrutado de uma grande popularidade no Brasil desde os anos 1970. Mais e mais pessoas do catolicismo se juntam a essas igrejas livres e moralistas, numa tendência seguida por Jair Bolsonaro e muitos membros de seu aparato governamental. Um dos projetos de Vicente em sua música é explorar as realidades negra, gay e afeminada dentro desses templos evangélicos, partindo de sua própria realidade de vida.
Em sua página do Soundcloud, existem até agora apenas fragmentos de músicas e de sets ao vivo, que ainda assim funcionam de forma processual e dançante, apontando as pesquisas traçadas pelo artista.
No começo, o Rio de Janeiro foi uma metrópole libertadora para Vicente. Entretanto, como muitos artistas, ele teve que se transferir para outra cidade: “Quando me mudei, fiquei hipnotizado e pensei: nossa, que cidade foda!”, relembra. “Toda essa natureza combinada com o cenário urbano é incrível. Mas, em algum momento, você percebe que o Rio é perfeito apenas para os ricos.”
O que ele descreve é uma vida cotidiana amarga para muitos jovens cariocas. O custo de vida no Rio é quase tão alto quanto em Berlim. O salário mínimo é de R$ 998 e, além disso, o Brasil tem sido atormentado há anos por uma crise econômica que tem tornado o trabalho escasso.
Formado na EBA com foco em figurino, Vicente trabalha como freelancer em produções audiviosuais. Quando os jobs não vieram mais, ele decidiu se mudar. Pensou em ir para São Paulo, uma opção óbvia, já que a maior cidade do país é o centro mais importante do techno e da cultura underground, onde a maioria dos artistas terminará mais cedo ou mais tarde. “Mas na verdade eu queria viver em uma cidade mais calma, comer bem, viver bem”, observa Vicente.
E, mesmo fora de São Paulo, há algo acontecendo no cenário da música eletrônica brasileira, como um todo: “Belo Horizonte tem uma cena muito movimentada, contemporânea e potente”, diz Vicente sobre a capital mineira. “Eu a acompanho há apenas três anos, mas já existem muitos coletivos.”
Hoje, Vicente mora na capital mineira há dois anos. “Belo Horizonte parece uma cidade pequena, mas não é”, diz ele. “Aqui, eu posso viver e trabalhar melhor que no Rio”. Afinal, a cidade tem quase dois milhões e meio de habitantes. Fora do Brasil, no entanto, essa jovem cena musical é pouco conhecida, o que provou ser uma vantagem para Vicente e seu projeto Podeserdesligado, no qual ele também atua em trilhas sonoras para desfiles de moda e filmes.
A música eletrônica foi apropriada pelos brancos. House e techno nasceram pretos
– Podeserdesligado
Em São Paulo, a cena techno já está estabelecida, com DJs locais como Cashu (Mamba Negra) ou Paulo Tessuto (D-EDGE e Trackers) tocando em todo o mundo. Mas o que se destaca é: a maioria das novas estrelas na hypada cena brasileira underground é branca. Artistas negros como Podeserdesligado, por outro lado, na melhor das hipóteses acabam vivendo na segunda fila.
Esses artistas raramente são bookados para festivais europeus, com poucas exceções como Loïc Koutana, que acabou de levar o Teto Preto para Berlim. Como Vicente, ele faz parte da coletividade NÁMÍBIÀ, que atua no campo das artes visuais e da música eletrônica em São Paulo. Artistas negros que querem quebrar a supremacia branca no cenário cultural brasileiro.
Esse panorama do techno no Brasil, defende Vicente, é apenas um reflexo das condições sociais do país. Que, por sinal, não é um destino novo na cena musical global: “A música eletrônica foi apropriada pelos brancos. House e techno nasceram pretos”, diz ele. “Hoje é assim: Quem tem dinheiro para ter equipamento? Para produzir a música? Para viajar? São as pessoas brancas. Então, a música que nasceu preta nos chega ao Brasil completamente branca“.
E como ele acha que isso pode ser mudado? “Além de políticas públicas que vejam o negro como fonte de subjetividade, na minha própria música eu tento construir um futuro em que os negros estão realmente no poder.”
Este texto faz parte de uma parceria entre a Revista Híbrida e a SPEX. A SPEX tem sido a a principal fonte para jornalismo de ponta sobre cultura pop na Alemanha, desde 1980. Ela contextualiza música, literatura, cinema, artes e tudo nesse meio, com uma visão crítica sobre acontecimentos políticos e sociais.