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“A Pequena Sereia”: do conto ao live-action, veja as referências LGBTQIA+ da história

Conheça as referências LGBTQIA+ em "A Pequena Sereia", do conto original do século XIX ao live-action estrelado por Halle Bailey

Com menos de duas semanas de exibição, o live-action de A Pequena Sereia estrelado por Halle Bailey já ultrapassou a marca dos US$ 320 milhões (R$ 1,57 bilhão) de arrecadação e se tornou a sexta maior bilheteria do ano, rendendo outra vitória nos cinemas para a Disney.

Mas entre muita nostalgia, canções inesquecíveis, efeitos especiais e o fato de ser um dos maiores clássicos já produzidos pela empresa do Mickey, A Pequena Sereia sempre foi uma alegoria para temas, histórias e personagens LGBTQIA+, do conto original publicado no século XIX ao filme recém-lançado. Abaixo, veja como a história de uma criatura marítima apaixonada por outro mundo e desesperada para mudar sua vida conseguiu ser imortalizada ao longo dos séculos com a ajuda de homens gays, drag queens e crianças trans.

A pequena sereia de Hans Christian Andersen

Assim como a maioria dos clássicos Disney, A Pequena Sereia também tem inspiração em uma história mais trágica que a sua versão animada. Neste caso, o conto original sobre uma princesa do mar apaixonada por um humano foi escrito no século XIX pelo dinamarquês Hans Christian Andersen.

Nascido em 1805, Andersen escreveu ao menos 168 contos infantis ao longo de sua vida, entre eles clássicos como O Patinho Feio, O Soldadinho de Chumbo e Pequena Sereia. Este último foi pensado como uma declaração ao seu melhor amigo, o também Edvard Collin, que é descrito por historiadores e biógrafos como a grande paixão do autor.

Ao contrário da adaptação feita pela Disney, o conto original de Handersen termina sem um final feliz. O príncipe acaba se casando com outra humana, enquanto a sereia é transformada em brumas do mar e sua alma condenada a pagar uma penitência por 300 anos. Escrita em 1837, a história é uma analogia à paixão não-correspondida do autor pelo amigo, que disse não amálo da mesma maneira e se casou com uma mulher.

Com um final infeliz e detalhes mais sangrentos, como ter a língua cortada em troca das pernas que a tornam humana, a sereia de Handersen representa o desolamento que ele sentiu e o sacrifício próprio que fez quando não teve seu amor correspondido pelo amigo. Ao descobrir que Collin iria se casar com uma mulher, o autor teria enviado uma carta na qual declara que o amava como se ele fosse “uma linda garota da Calábria (região italiana)”.

Hans Christian Andersen, autor dinamarquês do conto "Pequena Sereia" (Foto: Divulgação)
Hans Christian Andersen, autor dinamarquês do conto “Pequena Sereia” (Foto: Divulgação)

Foi logo depois desse episódio que Handersen escreveu Pequena Sereia. O  primeiro manuscrito da história foi enviado para Collin. Mais tarde, no prefácio do livro em que o conto foi publicado inicialmente, o autor colocou uma explicação de que a história tinha um “significado mais profundo” do que poderia parecer inicialmente.

A pesquisadora holandesa Martine Mussies escreveu uma tese em que define o silêncio da sereia muda como uma alegoria para a própria situação de Andersen: ele teve que ficar quieto sobre seus sentimentos por Collin (que seria o príncipe), enquanto cada momento parecia como se estivesse pisando em facas – a mesma sensação que sua protagonista tinha ao andar pela primeira vez.

Apesar de toda a sua produção artística na literatura e no teatro, quando o autor morreu, em 1875, a Dinamarca decidiu homenageá-lo mais tarde construindo a estátua de uma sereia, que permanece até hoje no porto de Compenhague. Devido à sua importância para a literatura, no dia 2 de abril – data de seu nascimento – também é comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-juvenil.

Estátua da “Pquena Sereia” de Andersen no porto de Copenhague (Foto: Divulgação)

O live-action lançado este ano homenageia Andersen logo em sua cena de abertura, com uma citação do conto original escrito pelo dinamarquês: “…Only that the mermaids have no tears, and therefore they suffer more” (“…Só que sereias não têm lágrimas, e por isso elas sofrem mais”, em tradução livre).

A luta de Howard Ashman

Mais de 160 anos após a publicação do conto de Andersen, a Disney decidiu adaptar a história de Pequena Sereia para uma de suas animações. Naquela época, os estúdios do Mickey passavam por um período de baixa popularidade e estavam há 30 anos sem lançar um conto de fadas. Precisando desesperadamente emplacar algum sucesso nos cinemas, eles então decidiram convidar o letrista Howard Ashman e o compositor musical Alan Menken para o projeto de adaptação do primeiro conto de fadas a ser lançado pela empresa em mais de 30 anos.

A Pequena Sereia foi o primeiro projeto criado em colaboração por Menken e Ashman para o cinema. Mais tarde, eles assinariam juntos as trilhas sonoras de A Bela e a Fera e Aladdin, este último apenas em partes, uma vez que o letrista morreu antes de o filme ser finalizado (falamos mais sobre isso aqui).

Alan Menken e Howards Ashman recebem o Oscar de Melhor Canção Original por “A Pequena Sereia”, em 1990 (Foto: Divulgação)

Ashman era um homem gay que vinha do teatro musical, onde já tinha criado A Pequena Loja de Horrores, em 1986. Quando aceitou o convite da Disney para trabalhar n’A Pequena Sereia, ele decidiu que faria novamente um musical e importou o conceito da “música de desejo”, artifício utilizado na Broadway para apresentar, através de uma balada cantada ainda no primeiro ato, a maior ambição da protagonista e, de quebra, criar sua conexão com a audiência.

Mas o letrista teve que brigar para ser ouvido. A música que ele escreveu para esse momento crucial da hisótria não tinha cativado os executivos da Disney, que acharam a letra e a melodia muito “entediantes”. Ashman então ameaçou abandonar o projeto no meio da produção se a canção não entrasse, e acabou conquistando a aprovação para incluí-la na história.

Essa música era “Part Of Your World” (Parte do seu mundo), que ao longo dos anos se tornou a principal marca da trilha sonora de A Pequena Sereia, além de uma das canções mais reverenciadas (e igualmente difícil de executar) no catálogo do teatro musical. “Ela é a maior preciosidade de tudo que criamos”, declarou Menken, após a morte do amigo.

Leituras por trás de “Parte do seu mundo”

Entre créditos, reprise e a cena principal, a melodia de “Part Of Your World” aparece ao menos cinco vezes na animação original de A Pequena Sereia. É através dela que entendemos toda a fascinação, curiosidade e urgência de Ariel em conhecer a superfície e andar pelas (como eles chamam?) ruas.

Ashman, que gravou a demo entregue ao estúdio e usada para apresentar a canção, tinha uma visão muito clara de como a música deveria ser apresentada no filme. Ele entrou na cabine de gravação com Jodi Benson, a voz original de Ariel, apagou as luzes, fez com que ela segurasse o próprio rosto e dirigiu em pormenores o direcionamento de como cada palavra deveria soar canta no fundo do mar (veja abaixo).

Na nova versão do filme, há uma segunda reprise de “Part Of Your World” cantada no terceiro ato, quando Ariel acha que perdeu o príncipe Eric e não teve o seu amor correspondido. A letra, apesar de inédita, bebe na fonte criada originalmente por Ashman para a primeira, mas descartada posteriormente por ser muito “triste” para uma animação (abaixo).

A primeira reprise de “Part Of Your World”, e a única que conhecíamos até então, mudava o tempo verbal do refrão. Se antes Ariel cantava que “queria ser parte daquele mundo”, após resgatar Eric de um naufrágio o desejo da sereia já é uma promessa quando ela diz “assista e verá que um dia eu serei parte do seu mundo”. A demo inicial, entretanto, era menos otimista. Nela, Ariel dizia “mas posso ver que nunca serei parte do seu mundo” (abaixo).

Nessa segunda reprise adicionada ao live-action, Halle Bailey canta o mesmo sentimento de desesperança imaginado inicialmente por Ashman, enquanto se arrepende de ter desistido de tudo para estar com o príncipe. Ela não é apenas um aceno sutil ao letrista, mas também à história vivida e contada originalmente por Andersen, onde temos um vislumbre do quanto a protagonista se sacrificou para buscar o amor.

Assim, por mais que a letra explícita fale sobre o desejo de uma sereia em explorar a superfície, essa inadequação com o mundo em que ela vive carrega uma metáfora forte e direta para os sentimentos de exclusão das pessoas LGBTQIA+, narrados inicialmente por Handersen e depois por Ashman.

Úrsula inspirada em Divine

A figura voluptuosa, lânguida e debochada de Úrsula, assim como todas as animações da Disney, teve inspiração em uma pessoa real: a drag queen e atriz Divine, musa do cinema queer de John Waters.

Divine, que morreu um ano antes de a animação chegar aos cinemas, construiu uma carreira sólida como uma persona esdrúxula e exuberante no cinema, através de filmes como Pink Flamingos e Problemas Femininos. Ashman, que como todo homem gay vivendo nos anos 1980 também era fã da atriz, sugeriu então ao desenhista Rob Minkoff que a inspiração para Úrsula seria a artista.

Corpo, maquiagem, trejeitos e até a voz de Úrsula foram inspiradas por Divine, a pedido de Ashman. As semelhanças eram tantas que a Disney chegou a cogitar que a drag queen fosse contratada para dublar a vilã oficialmente, mas o acordo nunca foi finalizado porque ela morreu de um ataque cardíaco durante as negociações. Assim, o papel acabou ficando com a veterana Pat Carroll. “Eu pensei nela como tendo um certo tipo de exuberância, extravagância e teatralidade”, disse.

A drag queen Divine foi a inspiração por trás do desenho de Úrsula (Foto: Divulgação)

No novo filme, Úrsula é interpretada pela atriz e comediante Melissa McCarthy, que admitiu ter se inspirado na sua própria paixão pelo universo das drag queens quando construiu a personagem: “Eu só espero que tenha deixado cada drag queen maravilhosa orgulhosa e deixado a Divine orgulhosa. Apenas entregando aquela mesma atitudo – entregar tudo de si, jogar tudo no ar, sem desculpas, fazer do seu jeito”, disse. “Quis dar a Divine tudo o que ela merecia.”

“Ter o humor e a tristeza e a ousadia de Úrsula é tudo que eu quero em um personagem – e, honestamente, tudo que quero em uma drag queen”, disse a atriz, que admitiu ser fã de Pink Flamingos e já ter se apresentado como drag antes da fama. “Se você nunca foi a um show de drags, não sabe o que está perdendo.”

“Poor Unfortunate Souls” (Pobres corações infelizes, no Brasil), a canção escrita por Ashman para apresentar Úrsula, se tornou ao longo dos anos uma das mais usadas por drag queens durante apresentações. Alguns dos nomes que já se arriscaram com ela no palco incluem Ginger Minj, Michelle Visage, Drew Sarich, Tituss Burgess, Rachel Bloom e Jinkx Monsoon.

Rob Marshall e John DeLuca

O recém-lançado live-action de A Pequena Sereia é dirigido por Rob Marshall, que assina também a produção ao lado do marido, o coreógrafo John DeLuca. O casal de ex-dançarinos, juntos desde 1983, já trabalhou em produções como Caminhos da Floresta (“Into The Woods”, 2014) e O Retorno de Mary Poppins (“Mary Poppins Returns”, 2018).

Em várias entrevistas para divulgar o live-action, o casal tem reforçado que o cerna da história que quiseram contar é a “tolerância”, tanto na luta do Rei Tritão para entender os humanos como na rainha da superfície em aceitar os seres do mar. Sem muitos spoilers, mas é isso que fica explícito na cena final do filme.

John DeLuca e Rob Marshall em entrevista de divulgação para “A Pequena Sereia” (Foto: Reprodução Youtube)

“O fato de que ela já teve um história própria com o mundo drag, interpretando personagens em shows de drags, ela entende de onde isso vem”, disse Marshall sobre a escolha de Melissa McCarthy para Úrsula. O diretor também admitiu que queria “honrar o legado” de Ashman. “Eu sei que era muito importante que esse filme tivesse significado.”

A fascinação de crianças trans com sereias

A história de uma jovem que se sente pressionado pelo mundo à sua volta, não encontra acolhimento em casa e faz de tudo para buscar uma realidade em que se sinta livre e feliz, inclusive mutilar o próprio corpo, fez com que ao longo dos anos A Pequena Sereia se tornasse um dos filmes preferidos de crianças trans.

É possível encontrar uma série de depoimentos, artigos científicos e relatos de psicólgos e psiquiatras especializados no atendimento a pessoas trans sobre essa fascinação, seja com a história da Disney ou com a figura da sereia.

“A história de Ariel tem um paralelo tão extenso com o desejo trans que não podemos ignorar o óbvio. Ariel deseja se tornar uma ‘menina real’ mudando seu corpo, e ouve que não pode. Em última instância, ela perde sua cauda por um par de pernas”, disse Katherine Rachlin, Ph.D. em Psicologia Clínica e especialista em gênero, ao site Mommyish.

“Isso combinado com o cabelo longo esvoaçante e outros atributos de beleza da Disney fazem com que ela seja uma super-heroína para crianças trans. Ela é o epítome da beleza feminia ao mesmo tempo em que tem um corpo não-tradicional. Ela ouve que não pode ser uma garota e fazer o que garotas fazem, mas ainda assim ela consegue ser e fazer.”

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