Híbrida
CINEMA & TV

Como “Renascer” está fugindo do estereótipo LGBT+ na TV

Bianca DellaFancy, Gabriela Loran e Galba Gogóia interpretam Janaína, Maitê e Natasha na nova versão de "Renascer" (Foto: Vida Fodona)

Lançado em janeiro deste ano, o remake de Renascer estreou no horário nobre da Globo atualizando uma história muito querida e conhecida pelo público, ao mesmo tempo em que já fez história antes de chegar ao fim. Nesta releitura, um núcleo de personagens que não existia na versão original leva para a faixa das 21h uma representatividade LGBTQIA+ até então inédita em tramas do gênero.

Algumas dessas personagens são Maitê, Natasha e Janaína, interpretadas respectivamente por Gabriela Loran, Galba Gogóia Bianca DellaFancy. O trio pertence ao núcleo de Buba, que já existia na primeira versão de Renascer, escrita por Benedito Ruy Barbosa em 1993, mas agora é retratada sob uma nova ótica, atualizando a trama para o século XXI.

A diferença na nova versão de Renascer nesse sentido já começa na própria escalação de Buba, hoje interpretada por Gabriela Medeiros, atriz de 22 anos que também é uma mulher trans na vida real. Na novela original, a personagem era vivida por Maria Luísa Mendonça.

Tramas trans em “Renascer”

Logo no início da nova trama de Renascer, o público acompanhou o drama de Buba quando o seu namorado, José Venâncio (Rodrigo Simas), descobre que ela é uma mulher trans.

Dali em diante, a notícia se espalhou pelos outros personagens e, na prática, rendeu cenas educativas que funcionaram como uma forma de rebater argumentos, sanar a curiosidade, explicar pontos básicos (ou nem tanto assim) e humanizar a figura de pessoas transexuais para quem está do outro lado da tela, mostrando dentre muitas coisas o senso de comunidade cultivado por pessoas LGBTQIA+.

Ao longo dessa jornada, as amigas de Buba surgem para elevar os espíritos da personagem e suavizar um drama que, aos poucos, começa a se repetir com cada vez mais frequência na teledramaturgia brasileira: a aceitação de pessoas trans nos mais diferentes âmbitos sociais.

Agora, nesta versão de Renascer, o arco narrativo de Buba não está concentrado em apenas um problema ou uma única pessoa. E a ampliação dessa história tem cativado o público, que vem elogiando as cenas em que as amigas da personagem apoiam e confortam a mocinha.

Para Gabriela Loran, atriz que já tem uma trajetória considerável na TV e no streaming com papeis na própria grade da Globo, a potência do núcleo de Renascer está exatamente em “fugir um pouco desse estereótipo da dor e mostrar personagens bem sucedidas, bonitas, independentes, poderosas e revolucionárias”.

“A gente já passa por tantas violências, grandes e micro violências no decorrer da vida, que fica complicado também ter que interpretar algo que é meramente ilustrativo. Até que ponto isso serve como uma denúncia?”, aponta Bianca DellaFancy, drag queen que é uma das maiores e principais influenciadoras LGBTQIA+ do mercado brasileiro e que agora tem sua grande estreia na teledramaturgia como Janaína.

Galba Gogóia, que também é roteirista, explica como fugir da superficialidade com que pessoas trans são retratadas e apresentar histórias realmente complexas e humanas ainda é um desafio na indústria, ainda que Renascer represente o início de uma mudança. “Eu sempre brinco, inclusive, nos meus outros trabalhos que se colocam uma (pessoa trans) é como se já fosse suficiente para a representatividade. Se tem uma, é a cota. Então, a gente vê três em cena e pensa ‘olha, estamos avançando’.”

Abaixo, as atrizes comentam os avanços impulsionados por Renascer, contam suas inspirações e desabafam sobre o longo caminho que a teledramaturgia ainda precisa percorrer para uma representatividade justa e real de personagens LGBTQIA+.

Em "Renascer", personagens de Gabriela Loran, Galba Gogóia e Bianca DellaFancy ajudam a mudar a formo como pessoas trans e LGBTQIA+ são representadas na TV (Foto: Vida Fodona)
Em “Renascer”, personagens de Gabriela Loran, Galba Gogóia e Bianca DellaFancy ajudam a mudar a formo como pessoas trans e LGBTQIA+ são representadas na TV (Foto: Vida Fodona)

HÍBRIDA: O trio entra em Renascer para ajudar Buba a se reconectar com si mesma e com a sua essência por ter “se perdido” em um relacionamento. Como vê a importância de um núcleo LGBT+ na novela, que não fale apenas sobre violência e ainda mais considerando que ele não existia na primeira versão da novela?

GABRIELA LORAN: Sem dúvida é histórico esse momento porque estamos mostrando nós mesmas, pessoas LGBTs, seres humanos que sangram, que choram, que têm sonhos, nesse lugar do afeto, do carinho, da amizade e mostramos que somos como quaisquer outras pessoas. Isso que é potente, né? Fugir um pouco desse estereótipo da dor e mostrar personagens bem sucedidas, bonitas, independentes, poderosas e revolucionárias.

BIANCA DELLAFANCY: Isso é muito importante. E é muito importante que tenha uma abertura de comunicação e que a gente possa falar para a direção sobre os caminhos que nossos personagens estão tomando. Isso tem acontecido e é muito legal. E falar de outros assuntos que não sejam apenas sobre violência, né? A gente já passa por tantas violências, grandes e micro violências no decorrer da vida, que fica complicado também ter que interpretar algo que é meramente ilustrativo. Até que ponto isso serve como uma denúncia? E até que ponto isso acaba sendo agradável para pessoas que são contra a nossa existência? Tem que haver esse cuidado. E esse cuidado tem acontecido (em Renascer). Não existia esse núcleo (na primeira versão da novela). E existe agora justamente porque os tempos mudaram.

Nós estamos ali representando histórias que poderiam ser nossas, de fato

– Bianca DellaFancy

GALBA GOGÓIA: Eu acho muito importante. Bem, eu trabalho também como roteirista. E essa luta para que personagens LGBTs, especificamente trans, consigam fugir desse lugar da violência é constante no meu trabalho. Quando estou principalmente como roteirista, que é um espaço onde posso ajudar a criar as histórias e mudar os rumos, eu luto muito. E quando a gente fala de personagens trans, sempre vai querer cair no lugar de… Ou é um personagem que sofre muita violência, está à margem da sociedade, ou com problemas com o próprio corpo. Quando, na verdade, a gente tem uma possibilidade gigante de falar de outras coisas, que essas pessoas são humanas, têm sonhos, sofrimentos, dramas, histórias, amigos, né? E acho que essa recriação desse núcleo de Renascer fala muito sobre isso, sobre uma releitura do tempo, sobre essas pessoas precisarem ter outras amigas, falar sobre a vida, ir para uma boate, serem felizes.

H: Qual a maior semelhança entre você e a personagem que vive em Renascer? E a maior diferença?

GL: Eu emprestei muito dessa segurança, desse lado taurina, conselheira, mãezona, pé no chão, firme. E eu acho que não existe uma grande diferença entre a gente não, sabe? A Maitê é muito Gabriela e a Gabriela é muito Maitê. Até na questão da Psicologia, porque eu coloquei que ela se formou em Psicologia com a Buba, também tem seu consultório, e realmente eu também estou estudando Psicologia. Tenho 30 anos, que é por volta da idade da personagem também. Somos muito parecidas, não temos diferença não.

BD: A Janaína me lembra muito a Bianca DellaFancy do começo da minha carreira. Busquei esse olhar mais ingênuo, esse olhar prematuro sobre a vida, a arte, a noite. A Janaína tem esse olhar muito, muito bonito de quem tá começando a galgar os objetivos, a realizar os sonhos aos pouquinhos. Ela tem sonhos muito grandes, está plantando a sementinha, está regando aos pouquinhos e eu busquei essa referência para construir a Janaína, justamente como a pessoa que eu era dez, quinze anos atrás, quando eu só imaginava o que viria me tornar. E a maior diferença é que Bianca DellaFancy é muito mais polida em todos os aspectos. A Janaína está no começo da carreira, ela não tem os pézinhos no chão, já acredita que é uma estrela, que o mundo é dela. Só que o mundo ainda não sabe disso. Mas pra ela isso é apenas um detalhe.

GG: É engraçado porque a gente é muito parecida. Muito mesmo. Ela está ali dentro do grupo como a cômica, a engraçada, e ela tem essa forma de querer ajudar a Buba a sair do sofrimento com os relacionamentos de maneira muito despachada, do tipo “Vamos ser felizes, sabe? Não vai sofrer por homem, não, vamos beber, vamos arrumar o próximo, esse aí deu problema, next. Vamos pra festa, chega de falação, vamos curtir.” E eu sou muito assim na minha vida, tento resolver as coisas por esse caminho da praticidade, sou essa pessoa prática e rápida. Eu acho que a gente é um pouco diferente porque ela é só assim, então tem vezes que na vida eu sou um pouco mais calma, reservada e introspectiva também. A Natasha está sempre nesse registro da euforia, da energia lá em cima.

H: Qual a primeira referência que você tem de atuação na TV e que tenha te impactado?

GL: Sem dúvida, Zezé Motta foi uma grande referência pra mim, um grande impacto. A Taís Araújo também, sem dúvidas. Ela é referência para todas nós desde muito tempo, mas existem outras atrizes negras que também somaram, que trouxeram essa representatividade e fizeram com que eu me reconectasse.

BD: Ah, é difícil, né, gente, eu tenho 34 anos! Então é difícil pensar na primeira referência, mas uma das que me marcou bastante foi o Félix (Mateus Solano, na novela Amor à Vida, de 2013). Ele me marcou porque na época eu já era gay – sempre fui gay, mas eu ainda estava ali num momento meio enrustido, e toda vez que ele aparecia rolava um desconforto comigo e acho que com todas as gays que não eram 100% aceitas pela família, ou que ainda não tinham saído do armário completamente. O Férix aparecia, a gente ficava meio desconfortável, tipo “ai meu Deus, essa bicha aí…”. Então eu lembro bastante do Félix nesse sentido, porque foi uma das primeiras personagens gays que tomou uma proporção enorme no Brasil. E eu, sendo gay, sentia um certo desconforto.

GG: Essa pergunta é dificílima, porque, de fato, eu fui uma criança que viu televisão desde muito pequena, então tenho memória de várias novelas. Eu reassisto novelas, assisto as que eu não vi na época, e aí me pego assim: “gente, eu vi essa novela, eu tinha sete anos de idade!”. Eu me lembro das coisas, sempre fui realmente apaixonada e sempre quis fazer isso da vida – trabalhar com criação audiovisual, com teatro… Mas talvez uma que eu lembre muito é Da Cor do Pecado (2004), que eu amava e tinha a vilã Bárbara (Giovanna Antonelli). Eu era fascinada por essa vilã, me lembro que brincava muito de ser ela com minhas primas. Tem uma cena icônica em que o personagem do Lima Duarte (Afonso, sogro da vilã) desmascara a Bárbara, leva ela para um palacete, veste ela de princesa e destrói a casa. Eu brincava pegando a colcha da cama da minha mãe, que era de renda branca e fazia essa cena toda hora. Então, talvez essa tenha me marcado muito porque eu queria ser ela. Mas amo todas as novelas.

H: O que esse núcleo de Renascer traz de diferente para a representatividade LGBT+, especialmente trans, em telenovelas?

GL: Mostrar que somos humanas e sair desse estereótipo da dor. Acho que isso é o mais importante. E mostrar também personagens que não estejam ligadas apenas à prostituição ou complexamente ligadas a problemas de ir ao banheiro, por exemplo. Essas personagens que a gente vive estão muito à frente dessas problemáticas, que já estão lá para trás. A gente tem outros problemas, outras complexidades para viver. Acho que é isso que as nossas personagens trazem.

BD: A diferença é justamente o fato de estarmos ali, né. A gente não vê muitos núcleos LGBTs na novela, e a gente está vendo a Buba, que é uma mulher trans. Temos travestis, temos outra mulher trans, e temos eu, que sou um homem gay cis e que faz drag. Acho que justamente o que o núcleo de Renascer traz de diferente somos nós, que estamos ali fazendo os papéis que nos dizem respeito. Nós não estamos interpretando alguma coisa que não poderíamos ser na vida. Essa é a diferença, nós estamos escrevendo a nossa narrativa.

GG: Sobre a representatividade nesse núcleo tem duas coisas muito legais. A primeira é que a gente está vendo ali essas personagens chiques, sabe? A gente até brincou nos bastidores que nós somos umas Donas Helenas trans, né? Elas são chiques. Elas têm belas roupas, elas não estão falando só sobre marginalidade. Eu, por exemplo, já fiz várias prostitutas no audiovisual. Eu amo todos os meus trabalhos, tenho orgulho de ter feito, mas a gente ainda tenta cair nessa representação estereotipada. A segunda é sobre termos três trans sendo amigas em cena, na novela das 9h, o que de fato é uma coisa inédita, né? Eu sempre brinco, inclusive, nos meus outros trabalhos que se colocam uma (pessoa trans) é como se já fosse suficiente para a representatividade. Se tem uma, é a cota. Então, a gente vê três em cena e pensa “olha, estamos avançando”. Não é que todas as pessoas trans e travestis são iguais. Cada uma vai agir, pensar e se portar de um jeito. Isso é uma conquista muito legal.

Não é que todas as pessoas trans e travestis são iguais. Cada uma vai agir, pensar e se portar de um jeito

– Galba Gogóia

H: Se pudesse escolher um papel dos sonhos de alguma trama antiga, qual seria?

GL: Nossa, fazer parte do elenco de Xica da Silva, com Taís Araújo e Zezé Motta, seria incrível também, né? Também tem Central do Brasil, com Fernanda Montenegro, que eu gostaria de interpretar, amo esse filme demais. O Auto da Compadecida, muitos filmes importantes… Eu gostaria de fazer parte não só da teledramaturgia da TV, mas também desses lugares, como o cinema brasileiro, que é tão potente.

BD: Ah, eu seria alguma das Helenas. Ou a Carolina Dieckmann em Cobras e Lagartos, em que ela fez a Leona. A Leona é icônica.

GG: Isso é difícil, eu até falei da Bárbara, mas acho que uma das personagens antigas que eu escolheria seria a Tieta. Sou completamente apaixonada pela obra do Jorge Amado, e essa novela, a Tieta (1989), eu assisti quando o Globoplay lançou. Eu só tinha memórias de imagens, de cortes antigos, mas eu assisti à novela inteira. E é impressionante pensar aquela novela no contexto que foi feita, no fim da ditadura. A Tieta é uma mulher que chega para aquele interior para revolucionar e quase para se vingar. Eu sou apaixonada pela personagem, por essa novela… E ela fala um pouco da minha história. Eu saí do interior com várias questões da parte da minha família de não me aceitar, me julgar, e hoje em dia estou num lugar muito legal de conquistas de trabalho, financeiras… Queria ser a Tieta, sabe? E chegar lá em Arcoverde (cidade natal da Galba, no interior de Pernambuco), vestida de vermelho, descer do meu carro e fazer aquele estardalhaço. Seria um sonho fazer essa personagem, porque ela é complexa, poderosa, engraçada, falha e tem a sua mentirinha. Eu amaria fazer.

H: No geral, acham que o audiovisual está mais receptivo para a contratação de atrizes trans? Ainda há alguma barreira a ser quebrada? Qual?

GL: Sim, acho que o audiovisual ainda está muito limitado em personagens trans, não tão bem desenvolvidas. As complexidades, as histórias estão sempre linkadas a outra pessoa. Ou seja, eu sou sempre amiga de alguém e nunca tenho um próprio enredo, uma história própria. São sempre personagens de bengala para uma protagonista ou para alguém ali ao lado. Mas o que eu sinto falta é, primeiro, não estereotipar, não colocar pessoas trans para fazer só a personagem trans. E, quando for fazer, que não sejam apenas personagens estereotipadas com glitter, purpurina e coisas que não são mais tão reais assim, quando a gente fala sobre a nossa vivência real do dia a dia. Quando você abre o meu perfil no Instagram, você não me vê cheia de paetê, você não me vê falando com um linguajar estereotipado. Eu sou humana e complexa assim como qualquer outra pessoa. Acho que a dramaturgia e os roteiristas precisam contratar mais pessoas trans para essas mesas de criação, para que isso não aconteça.

Eu sou sempre amiga de alguém e nunca tenho um próprio enredo, uma história própria

– Gabriela Loran

BD: Eu acho que é um caminho que estamos traçando, né. O fato de estarmos ali já é um passo que estamos dando. Não só a gente, como a emissora, o audiovisual de modo geral. Eu acho que ainda existem, sim, barreiras a serem quebradas. As pessoas ainda nos colocam em lugares muito pré-estabelecidos, ainda olham para uma drag queen e imaginam que ela tem que estar dentro de uma boate e só. Mas a maior barreira mesmo é o preconceito. E nisso a gente está na batalha todo santo dia, né? Então, no geral, acho que está mais receptivo, mas ainda a passos de formiga. Estamos mostrando a nossa capacidade de trabalhar, que a gente não perde em nada para atores cis, no caso de pessoas trans; ou então atores héteros, no meu caso. Muito pelo contrário, a gente entrega muito mais.

GG: Acho que o audiovisual já está muito mais aberto a atrizes trans, mas a gente ainda precisa caminhar demais. Inclusive, do meu lado roteirista, às vezes eu participo das escalações de elenco e escuto coisas que fico um pouco abismada de como ainda existe um certo olhar de que atrizes trans precisam ser 100% passáveis, que elas tenham aquela aparência que quem assista não perceba que é uma pessoa trans. Ainda cai muito no lugar que tem que ser muito bonita, tem que ser modelo. Inclusive, muitas vezes a gente vê pessoas escaladas por isso. A outra dificuldade é a gente só poder fazer personagens que claramente sejam trans. A gente ainda fica muito limitada a poucos papéis, há poucas possibilidades de mostrarmos nosso trabalho. Mas acredito que estamos avançando para um futuro. E acho que cada vez estamos melhorando, a exemplo de Renascer, em que estou eu e as duas Gabis. Então, acho que temos um caminho muito bonito adiante.

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