Híbrida
CINEMA & TV

“Cidade; Campo” mostra romance lésbico em meio a crítica social

bruna Linzmeyer e Mirella Façanha em cena de "Cidade; Campo", em cartaz nos cinemas brasileiros (Foto: Divulgação)

Vencedor do prêmio de Melhor Direção na mostra Encounters do último Festival de Berlim, Cidade; Campo, novo longa-metragem da diretora e roteirista Juliana Rojas (As Boas Maneiras), chegou aos cinemas brasileiros sob grande expectativa. O filme conta duas trajetórias opostas de migração entre os meios urbano e rural, mostradas através de Joana (Fernanda Vianna), que é forçada a sair do interior de Minas para viver em São Paulo; e do casal Mara (Bruna Linzmeyer) e Flávia (Mirella Façanha), que faz o caminho inverso e abandona a metrópole para morar no interior do Mato Grosso.

“Queria que o filme tivesse essas duas perspectivas: de sair do campo para chegar na cidade e vice-versa”, explica Juliana Rojas à Híbrida, durante a pré-estreia carioca de Cidade; Campo. Ela diz que a ideia do roteiro surgiu a partir da “vontade de falar sobre o sentimento da nossa relação com o nosso lugar de origem e como, quando a gente migra, a gente deixa de pertencer”.

Esse pertencimento (ou melhor, a falta dele) aparece logo de cara, quando Joana chega de mala e cuia à casa de Tânia (Andrea Marquee), a irmã que ela não via há anos e com quem é obrigada a morar depois de ter sua roça destruída pelo rompimento da barragem de uma mineradora. O filme não chega a dar nome aos bois, mas a história é claramente inspirada nas milhares de vítimas da tragédia que a Vale provocou há cinco anos em Brumadinho.

Mineira como sua personagem, Fernanda Vianna consegue passar simultaneamente a dureza e a fragilidade de Joana, sem escorregar nos estereótipos comuns em papeis desse tipo. Ao longo da primeira metade de Cidade; Campo, acompanhamos enquanto Joana, agora sem terra pra plantar nem cavalo pra montar, tenta sobreviver à cidade grande e ao trauma que viveu.

Fernanda Vianna caracterizada como Joana, uma das protagonistas de "Cidade; Campo" (Foto: Divulgação)
Fernanda Vianna caracterizada como Joana, uma das protagonistas de “Cidade; Campo” (Foto: Divulgação)

Com a ajuda de Jaime, seu sobrinho-neto vivido com carisma de sobra pelo ator mirim Kalleb Oliveira, Joana consegue se cadastrar num aplicativo e trabalhar como faxineira terceirizada. Um dos apartamentos que ela limpa pertence a Mara e Flávia, uma ligação que o público descobre através de detalhes quase imperceptíveis, como a foto das duas em um porta-retrato, e que dá início à segunda parte de Cidade; Campo.

Enquanto Joana é encurralada em uma condição de vida precária, Flávia decide ir para o interior do Mato Grosso do Sul viver em meio à natureza e aos animais da fazenda que acabou de herdar do seu pai. Ela abandona o emprego em informática e o apartamento em São Paulo e muda para o campo, acompanhada da namorada, Mara, uma veterinária.

“Ela tá de luto, acabou de perder o pai e decide junto com a companheira viver no mato e ter qualidade de vida. Lá, ela começa um processo de resgate de ancestralidade, de entender quem é esse cara que deu a vida para ela e, na ausência dele, compreender quem ele é e quem ela é sendo filha dele”, explica Mirella França.

Tanto Mara quanto Flávia chegam no interior “com o imaginário de quem mora na cidade, achando que vai ser mil maravilhas morar no mato”, como explica Mirella. “Tem um pouco dessa romantização do que é o trabalho na roça”, completa Bruna Linzmeyer.

Não demora muito para que as duas comecem a se incomodar com a vida rural “raiz”, ainda que tentem sobreviver juntas aos perrengues, ancoradas no amor de uma pela outra.

“Eu falo enquanto atriz e artista, mas também enquanto espectadora: esse é um filme sobre luto, sobre migração, sobre afeto e, vejam só, as personagens são lésbicas! As personagens lésbicas também atravessam lutos, mudam de cidade, se decepcionam…”, observa Bruna, em entrevista à Híbrida. “(Serem lésbicas) não é a temática da vida, essas personagens vivem coisas como pessoas, que todo mundo sempre vive e que a gente tanto sente falta de assistir. Não é ‘essa personagem é lésbica, ela vai se apaixonar e é só isso que acontece'”.

Cidade; Campo tem cena de sexo realista entre mulheres  

A força da relação transparece de forma ainda mais clara quando elas transam na cama que pertenceu ao pai de Flávia, em uma sequência surpreendente não pelo seu teor explícito, mas pela sua delicadeza. Bruna e Mirella se entregam completamente à cena, que transborda de forma explícita o romance e o tesão entre essas duas mulheres. Aqui, a direção de Juliana consegue ilustrar com maestria a intimidade e cumplicidade do sexo, em momentos fugazes como o aperto na dobrinha de uma barriga, uma lambida inusitada, o abraço constante etc.

Bruna Linzmeyer (Mara) e Mirella Façanha (Flávia) em cena de “Cidade; Campo” (Foto: Divulgação)

“É uma cena muito importante na dramaturgia do filme porque ela reitera o afeto entre essas mulheres antes de tudo começar a ruir. É a última cena de leveza”, aponta Bruna, celebrando ainda o fato de que, durante as filmagens da sequência, apenas mulheres foram permitidas no set. “É muito mais confortável porque o medo fica lá atrás. Num set de homens é o contrário. Alguém precisa conquistar a minha confiança para que eu fique relaxada”.

Ela, Mirella, Juliana e Alice Andrade Drummond, diretora de Fotografia de Cidade; Campo, pensaram e desenharam com cuidado e antecedência todos os detalhes da coreografia da cena, que ainda teve um pouco de improviso das atrizes. “A gente fez fotografias de onde a gente queria exatamente – essa posição, esse gestual, essa mão, essa perna… Então, quando fomos filmar, a gente sabia exatamente o que queríamos”, explica Bruna.

Em comparação com a jornada de Joana, a história de Mara e Flávia concentra uma parte maior do surrealismo fantástico pelo qual Juliana Rojas é conhecida e que imprimiu tão bem em As Boas Maneiras. Vultos, espíritos, visões e transes são frequentes, provocados tanto por um chá de ahyauasca quanto pelo luto de Flávia, sua relação com aquele local e sua ancestralidade.

Nesse sentido, o filme peca apenas pela forma como distancia as duas histórias ao invés de intercalá-las e deixar ainda mais evidente a disparidade entre elas. Enquanto Joana é obrigada a abandonar seu lar e viver esgotada física e mentalmente, Mara e Flávia escolhem deixar para trás o conforto que tinham na cidade e embarcar numa aventura pelo interior.

Dividir esses dois arcos em “blocos” acaba desperdiçando a ambundância de contrastes e semelhanças narrativas e visuais entre as personagens e diminuindo o ritmo do filme, que em alguns momentos fica mais arrastado do que deveria.

Confira aqui a lista com as sessões de “Cidade; Campo” nos cinemas brasileiros.

Notícias relacionadas

Al Pacino diz que doou cachê de “Perdidos na Noite” para instituições LGBTQIA+

Revista Híbrida
1 mês atrás

Mostra “Curta Sapatão” reinvidica a presença lésbica no audiovisual

Anita Guerra
6 anos atrás

José Padilha fala sobre O Mecanismo: “Brasil não é país de bandidos e mocinhos”

João Ker
7 anos atrás
Sair da versão mobile