Em clima pós pandêmico, o Festival de Cinema de Cannes 2023 chegou à sua 76ª edição com salas de cinemas lotadas, filas quilométricas e consolidado como o maior evento dedicado ao cinema mundial de autores. Entre os 21 filmes na corrida pela Palma de Ouro, estão grandes nomes da indústria da sétima arte, como o japonês Kore-eda, o finalandês Aki Kaurismaki, o turco Nuri Bilge Ceylan, a italiana Alice Rohrwacher e Karim Aïnouz, o único brasileiro em competição com Firebrand, estrelado por Jude Law e Alicia Vikander.
Neste ano, Cannes quebra um novo recorde: são sete diretoras em competição, um aumento considerável quando comparado com a média anterior, que não passava de três. Ainda assim, o filme escolhido para abrir o evento pôs em xeque o clima de respeito
Com Johnny Depp no papel do rei Luís XV, Jeanne du Barry abriu o evento na Croisette e atraiu uma enxurrada de críticas ao ator, que voltou à tela grande após um hiato de três anos no qual foi condenado por agredir a ex-esposa, Amber Heard. No novo trabalho, ele contracena com a atriz e diretora francesa Maïwenn, no papel da personagem-título.
Ainda na cerimônia de abertura Michael Douglas recebeu a Palma de Ouro Honorária pelo conjunto de sua obra no cinema. Nesta primeira semana de festival, entre as sessões mais disputadas estão as de May/December, de Todd Haynes, com Rooney Mara, Natalie Portman e Juliane Moore; e do longa How to Have Sex, o primeiro longa-metragem da diretora inglesa Molly Manning Walker.
Abaixo, confira alguns títulos LGBTQIA+ que já têm feito barulho por Cannes em 2023:
- Strange Way of Life, o faroeste homoerótico de Pedro Almodóvar
Um dos mais antecipados no festival, o curta-metragem Strange Way of Life, de Pedro Almodóvar e estrelado por Ethan Hawke e Pedro Pascal, ganhou uma recepção acalorada na Croisette. Apresentado pelo diretor espanhol como uma releitura do clássico Brokeback Mountain (2005), de Ang Lee, há quem já diga que o trabalho merece a atenção de um longa-metragem.
Sem entrar no cinema, dezenas de pessoas aguardavam embaixo de chuva para assistir ao curta. O título do trabalho faz alusão ao famoso fado Estranha Forma de Vida (1952), de Amalia Rodrigues, cuja letra sugere que não há uma existência mais estranha do que aquela que se vive virando as costas aos seus próprios desejos.
- Rosalie e a recusa aos padrões de beleza dos anos 1870
Em Rosalie, da diretora e roteirista Stéphanie di Gusto, uma mulher guarda um segredo. Será que seu marido vai aceitá-la após descobrir na noite de núpcias o que ela guarda? E os moradores do vilarejo? No drama, a cineasta francesa captura a essência de como a sociedade reage ao que foge à regra de 1870, traçando paralelos com os dias atuais.
Rosalie é um filme inspirado em fatos reais e faz um retrato tão sensível quanto potente sobre uma mulher barbada. Logo no começo da obra, vemos cães e caçadores prontos para atirar em uma rena que atravessa um lago. Minutos depois, o animal agoniza e é abatido com mais um tiro. Numa cena seguinte, vemos a pata do animal sendo atirado aos cães famintos. Com uma excepcional apresentação de personagens, a diretora mostra a que veio.
O trabalho de Di Gusto está na mostra Um Certo Olhar e também concorre à Palma Queer, dedicada a título com temáticas LGBTQIA+. Mas essa não é sua primeira vez em Cannes. A Dançarina (2016) foi exibido nesta mesma mostra e estreou no Brasil em 2019.
“Eu gosto muito do desenvolvimento da história e dos personagens”, disse a jornalista cultural Barbara Théate, na saída do cinema. “O segredo de Rosalie é rapidamente revelado ao espectador, mas o que faz com que acompanhemos a narrativa é a maneira como a história se desenvolve”, completa.
O desenrolar dos fatos é contado sem afobação ao longo de 1h55 e a realizadora os apresenta longe de estereótipos. É primorosa a interpretação da atriz Nadia Tereszkiewicz como a protagonista. No elenco está ainda o excepcional Benoît Magimel, como o marido Abel, que se casa sem conhecer o segredo da jovem.
- Un Prince e a importância da palavra no cinema francês
Un Prince, de Pierre Creton, é apresentado na mostra independente Quinzena de Realizadores, que a partir desta edição foi rebatizada Quinzena de Cineastas para incluir todos os gêneros que assinam os títulos na programação. O trabalho de Creton desperta os sentidos do espectador para o significado do que vemos na tela, os seus desdobramentos e o que ouvimos através da palavra.
Os poucos diálogos travados entre os personagens de Un Prince criam uma atmosfera poética através do texto narrado, bastante comum no cinema no francês, e fazem da palavra o carro-chefe da narrativa. A beleza está na imprevisibilidade das profissões dos personagens, que delineiam seres humanos imperfeitos com vontades, fragilidades e muitos desejos. Através de caçadores, um florista e um apicultor, o universo rural se projeta como zona erógena. A botânica e a sexualidade florescem na produção, que também concorre à Palma Queer.
- Le Retour: drama familiar e trauma geracional
Também chamou a atenção Le Retour, da diretora francesa Catherine Corsini, que está na Seleção Oficial e concorre à Palma Queer. O drama familiar se envereda pelas memórias de Khédidja (Aissatou Diallo Sagn), que trabalha para uma família parisiense como babá durante um verão na ilha de Córsega, onde já viveu. Ela leva as filhas adolescentes, Jessica (Suzy Bemba) e Farah (Esther Gohourou), para aproveitarem a oportunidade de voltarem à ilha que deixaram em circunstâncias trágicas 15 anos antes
Com um ótimo elenco à disposição, Corsini e sua corroteirista Naïla Guiget apresentam uma personagem que aos poucos vai descobrindo sexualidade, mas a história não decola por cenas que exploram o racismo com repetição, mergulhadas em clichês e superficialidade.
- Potência brasileira em Levante
O filme Levante, da diretora brasileira Lillah Halla, tem como tema central o aborto e foi extremamente bem recebido em sua estreia no Festival de Cannes. O longa está entre os selecionados na Semana da Crítica e concorre à Palma Queer.
Na história, Sofia (Ayomi Domenica Dias) é uma promissora jogadora de vôlei de 17 anos e fica sabendo que está grávida na véspera de um campeonato que poderia selar seu destino. Sem vontade de prosseguir com a gravidez, ela procura um aborto ilegal e se vê alvo de um grupo fundamentalista determinado a impedi-la a todo custo. Mas nem Sofia nem seus familiares pretendem se submeter ao fervor cego das massas.
Embora o filme seja o primeiro longa-metragem de Lillah, essa não é a sua primeira vez em Cannes, que já competiu com o curta Menarca (2020). Levante demorou sete anos para ser finalizado e pode soar como propaganda, pois não expõe contrapontos da comunidade evangélica, que parece representada em um único bloco monolítico, o que enfraquece a narrativa, enquanto a clara mensagem de luta e esperança enaltece o trabalho.
“Elas têm força no filme. A direção consegue captar a violência e repressão sobre o corpo da mulher através de um ótimo elenco”, disse a atriz suíça Ella Rumpf (Soul of a Beast, 2021) após a sessão. Um dos pontos altos no longa são as personagens negras, gordas e de diferentes orientações sexuais que compõem uma narrativa sem necessidade de explicação por estarem na trama, o que adiciona profundidade e humanidade ao enredo.
A grande atriz Grace Passô está no trabalho, mas com pouco tempo de tela na pele da treinadora Sol, que tem a função de mentora das jovens. Sem sombra de dúvidas, o filme coloca o Brasil em destaque na indústria do cinema e aparenta ter promissoras exibições nos festivais ao redor do globo. É uma produção diversa e que exibe uma gama de personagens em seus muitos corpos. É um filme honesto. Potente.
Enquanto isso, na competição principal…
Na Mostra Oficial, que concorre à Palma de Ouro, está Black Flies, de Jean-Stéphane Sauvaire, um drama sobre paramédicos, estrelado por Sean Pean e Tye Sheridan. Recheado de sangue, sirenes, suor e algum sexo, o filme tem como enredo a saúde mental dos protagonistas. O ritmo das cenas através da edição e o som direto tem papéis importantes no longa.
O Festival de Cinema de Cannes acontece de 16 a 27 de maio de 2023.