O assassinato de uma turista francesa durante o carnaval de Recife e a melancolia das cinzas dão o tom para uma discussão ampla sobre Brasil em “Fim de Festa”, longa-metragem do diretor Hilton Lacerda, que retoma a parceria com Irandhir Santos sete anos após o lançamento de “Tatuagem” (2013). No filme, o ator vive o policial civil Breno, enquanto a Quarta de Cinzas se torna uma alegoria sobre o momento social e político do país, como o próprio Hilton explicou à Híbrida durante o Festival do Rio.
“O filme traz uma perspectiva de encontros e desencontros, de como as pessoas não conseguem mais se relacionar, mesmo quando parecem estar juntas o tempo inteiro”, explicou o diretor. Nessa ressaca de carnaval, o público acompanha Breno e um quarteto de jovens formado por seu filho, Breninho (Gustavo Patriota), e os amigos Penha (Amanda Beça), Ângelo (Leandro Villa) e Indira (Safira Moreira).
O relacionamento do grupo com o carnaval e entre eles mesmos entra em foco, numa trama dionisíaca que envolve não só questões LGBTs, mas também racismo, machismo e o privilégio de classe. Ao invés de seguir pelo caminho usual do pai homofóbico com o próprio filho, Hilton quebra essa expectativa e adiciona camadas à relação entre Breno e Breninho, mostrada em detalhes carinhosos durante o filme. Mesmo que não seja óbvia, a aceitação do policial está perceptível ali, assim como pistas de um possível passado em que sua própria sexualidade era mais fluída.
“A temática LGBT está presente no que eu produzo porque faz parte da minha vida. Quando eu toco nesse assunto, tenho que pensar na forma de falar. Eu poderia ir para o lado mais fácil, com o pai policial que quebra tudo. Mas não, esse cara é um fraco, que vai se fragmentando com o filho e sua pansexualidade”, observa Hilton, que é também roteirista de “Fim de Festa”. Inclusive, o filme levou o Troféu Redentor de Melhor Longa Metragem de Ficção e de Melhor Roteiro no Festival do Rio.
Hilton chama a atenção do cinema nacional não é de hoje. “Fim de Festa” é o terceiro longa de sua carreira e segue os sucessos do documentário “Cartola – Música Para os Olhos” (2007) e do premiado “Tatuagem”, estrelado por Irandhir e por Jesuíta Barbosa. Nesses 13 anos, ele se tornou parte integral do time de elite do cinema nordestino, trazendo a região como plano de fundo para suas obras e contando suas histórias por si mesmo.
“Descentralizar a produção intelectual é muito importante, porque as pessoas têm o direito de falar – devem falar! -, e o cinema é um exemplo muito importante disso. Hoje em dia, o que eu vejo é praticamente uma censura da cadeia produtiva. E quando você faz isso, cala as pessoas. Estamos em um momento que a produção nacional está muito aquecida”, observa.
É possível identificar no filme várias referências a outras obras nacionais. Nas cenas do “Dracma”, o podcast independente da história, é clara a inspiração narrativa em “O Bandido da Luz Vermelha” (Rogério Sganzerla, 1968), um dos principais expoentes do Cinema Marginal. A homenagem, Hilton explica, veio da necessidade que o diretor sente de se pautar dentro do próprio cinema brasileiro.
Acho muito importante prestar atenção no cinema que a gente faz. Existe um universo em que posso me pautar sem parecer colonizado
– Hilton Lacerda
“Uma coisa que acho muito importante é prestar atenção no cinema que a gente faz. O Cinema Marginal é muito referente para mim, assim como a segunda fase do Cinema Novo. Existe um universo em que eu posso me pautar sem parecer colonizado. Claro que [Pier Paolo] Pasolini é importante para mim, que eu adoro [Stanley] Kubrick, mas a gente deve se preocupar com o que somos capazes de produzir aqui”, argumentou o diretor.
Essa mistura de paixões e influências se traduz em “Fim de Festa” com uma pegada de film noir tropical, com o technobrega de fundo. Enquanto tenta decifrar, em nível local, o assassinato de uma francesa e a confusão social que se instaurou no Brasil, Hilton aborda também embates identitários e geracionais dessa mudança.
É inevitável notar que existe um nacionalismo romântico vazando pela câmera e pelos planos de carnaval, enquanto assistimos ao desenrolar dessa história ao longo do fim de uma folia recifense. Afinal, existe algo que seja simultaneamente mais melancólico e eufórico do que o fim dessa festa específica? Por outro lado, há também um olhar autocrítico para o viralatismo quase que inconsciente do brasileiro, personificado de forma mais crua na personagem da sempre incrível Suzy Lopes.
Se em “Tatuagem” o diretor usou a a Ditadura Militar para entender como um grupo de teatro no interior do Nordeste resistia a portas fechadas e no palco contra a repressão sexual e institucional daquele governo, “Fim de Festa” usa a paleta mais atual possível para levantar questões similares. Mas dessa vez, a busca não é só pela resistência, mas também pela redescoberta do amor que o brasileiro sente – ou ao menos deveria sentir – pelo Brasil.
“A gente não sabe se no ano que vem teremos alguma coisa ou se vamos ter que nos curvar novamente”, observa Hilton sobre o clima de repressão cultural do Brasil. “Mas, de qualquer forma, estamos aqui para incomodar. E vamos continuar incomodando.”
Assista abaixo ao trailer de “Fim de Festa”, já em cartaz nos cinemas: