Comecei a assistir “GLOW “ por conta do trailer liberado pela Netflix no ano passado, anunciando ainda a 1ª temporada. Apesar do pé atrás ao pensar em uma série sobre mulheres colocadas num ringue, e dos estereótipos de que se faziam as lutas livres da época para alimentar o ego norte-americano, resolvi dar uma chance. Com a proposta de retratar os Estados Unidos dos anos 1980 e o desenvolvimento de pelo menos três personagens queer na 2ª temporada, me vi enlouquecido pela renovação da série e conto aqui o porquê (juro que tentei evitar os spoilers nesse texto, mas eles existem, então tomem cuidado).
Antes de mais nada, é impossível resistir à junção estética de cintura alta, collants, polainas, neon e muito laquê, coroada por uma trilha sonora repleta de Journey, Tears For Fears, Alice Cooper, Pat Benatar e Roxette. Mas nessa 2ª temporada, há também o surgimento de Yolanda “Yo-Yo” Rivas, interpretada por Shakira Barrera.
Yolanda é uma das poucas personagens “mexican-american” queer das séries norte-americanas. Seu envolvimento com outra personagem (contenção de spoiler) de ascendência oriental, a qual começa a se descobrir interessada por mulheres ao longo da trama, representa uma situação pouco retratada em produções audiovisuais. Partindo disso, a história de Yolanda é usada também como alegoria para vários brônquios do conservadorismo norte-americano da década de 1980, ao mesmo tempo em que acompanhamos uma dançarina de ascendência latina e personalidade expansiva lidar com situações que perduram até hoje.
Yolanda chega ao Gorgeous Ladies Of Wrestling após pedir um emprego para Sam Sylvia (Marc Maron), quando ambas se encontram em um clube de strippers. Mas a entrada da dançarina não é bem recebida pelas meninas e, a partir daí, a série levanta um debate sobre subempregos patriarcalistas e a moral social sobre o trabalho, enquanto Yo-Yo também é subjugada por algumas de suas colegas lutadoras por gostar de mulheres. Representando conscientemente o estereótipo da “mestiça” no show de entretenimento dissecado pela série, a personagem chega ao ponto de protagonizar um duelo de “negras versus mestiças” em uma das lutas, colocando no ringue duas populações igualmente minoritárias e oprimidas nos EUA da década de 1980.
Demorei toda a primeira temporada para entender a metalinguagem do entretenimento criticando de forma consciente a história do próprio entretenimento ocidental. Opressões seculares, a dificuldade contemporânea em se fechar para relações externas com o bloco socialista e evitar a ascensão de regimes de esquerda na América Latina, as disputas armamentistas, os resquícios da Guerra Fria, o machismo estrutural e a sociedade patriarcal aparecem expostos através dos estereótipos e das reações de cada uma das garotas da luta livre quando as luzes do ringue se apagam. Os signos construídos pela produção conseguiram ser bastante ilustrativos no que diz respeito à soberba norte-americana e ao sonho “Liberty Belle” de viver a democracia na terra das oportunidades e dos valores morais.
Outro personagem que merece destaque nessa nova leva de episódios é Florian Becker, interpretado por Alex Rich. Na pele do mordomo do produtor de “GLOW”, Bash Howard (Chris Lowell), ele encarna uma alegoria ao boom da AIDS na década de 1980, tratado então como “o câncer gay”. O personagem, que durante a 1ª temporada não teve muito desenvolvimento, volta agora como um fantasma para Bash.
Motivado pelo desaparecimento de seu funcionário após uma briga entre os dois, Bash acaba em um tradicional clube gay da época e, bastante incomodado, sofre com o ambiente, com as investidas de outros homens e com a descoberta sobre a sexualidade do amigo. Mais tarde, ao saber da doença de Florian, o preconceito de Bash o faz contratar uma equipe de limpeza e esterilização para todos os lugares de sua casa por onde o amigo passou, ilustrando não só o preconceito mas também a desinformação com que o vírus era encarado na época. Se a manobra do roteiro foi queerbait ou não, só saberemos na terceira temporada; mas a pergunta que fica por enquanto é se Bash Howard seria gay ou bissexual?
Além disso, a nova temporada da série também se aprofunda ainda mais na construção de outras personagens fortes na história. São os casos de Tammé Dawson (Kia Stevens), a Rainha da Previdência no ringue, mulher negra cujo filho é um dos dois primeiros alunos a ganharem a bolsa Martin Luther King em Stanford; e Cherry Bang (Sydelle Noel), a Junkchain que, ao se ausentar do grupo, é realocada em outra série e passa por um triste processo de embranquecimento, no qual alisam seus cabelos e retiram suas falas. Ambas as personagens trazem para a trama contextos de negritude, racismo e ausência de Estado.
Para quem ainda não assistiu ao início de “GLOW”, a série começa focando na história de Ruth Wilder (Alison Brie), jovem atriz que busca testes de elenco para driblar o desemprego. A situação da personagem é gancho para a primeira abordagem crítica do roteiro: a necessidade de desenvolvimento econômico da mulher em uma sociedade patriarcal. Taxada de “mulher anticonvencional”, Ruth é direcionada para o elenco de “GLOW”, uma nova série de baixo orçamento sobre mulheres no ringue, dando início a todo o debate sobre marginalização e estereótipos femininos que se torna o principal fio condutor ao longo da história.
https://www.youtube.com/watch?v=AZqDO6cTYVY
O enredo da primeira temporada basicamente gira em torno da tensão entre Ruth e Debbie Eagan (Betty Gilpin), ex-melhores amigas que se afastam ainda mais após o marido de Debbie (Rich Sommer) ter traído a esposa com Ruth. A série se utiliza desse drama para desdobrar construções acerca da rivalidade feminina, tematizando estereótipos que vão da moça de família e da destruidora de lares aos padrões de beleza ilustrados nos programas de ginástica da TV norte-americana.
Uma vez que Debbie e seu marido têm um filho pequeno, a primeira temporada de“GLOW” também encontra espaço para pautar questões relativas à maternidade e à vida de uma mãe solteira na década de 1980. Mais ainda, é na primeira temporada que os primeiros traços de personalidade das personagens passam a ser construídos, cada uma com suas vivências, origens e opressões particulares, que vão se desenrolando ainda mais nos novos episódios.
Com um time de produtoras executivas como Jenji Kohan e Tara Herrmann, além de showrunners e criadoras como Liz Flahive e Carly Mensch (o mesmo time por trás de “Nurse Jackie” e “Orange Is The New Black”), cada episódio de “GLOW” tem em torno de 50 minutos, que acavam tornando-se atraentes também pelo tom kitsch e debochado da própria época em que a história se passa.
Escute aqui a trilha sonora da primeira temporada da série: