Em outubro, às vésperas das eleições 2018, o norte-americano David Duke, um dos maiores líderes do grupo racista-extremista Ku Klux Klan (KKK), fez um elogio a Jair Bolsonaro durante seu programa de rádio: “Ele soa como nós. É um candidato muito forte, um nacionalista”. Flashback para 1974: um jovem Duke, em pleno exercício frente à KKK, avança com ideais supremacistas, planejando e apoiando ataques violentos a comunidades afrodescendentes e judaicas, enquanto ensaia uma carreira política e… é magistralmente enganado por um homem negro.
Isso mesmo, Ron Stallworth, um dos poucos policiais americanos e negros naquela época, conseguiu se passar por um homem branco e se infiltrar na KKK para comandar uma investigação policial de dentro da organização. Esta é justamente a história que o diretor Spike Lee apresenta em “Infiltrado na Klan” (“BlacKKKansman”), longa que integrou o 20º Festival do Rio e estreia hoje no circuito comercial brasileiro. E, vale lembrar, durante a Semana da Consciência Negra.
Se não fosse uma história verídica, o roteiro do filme (que é baseado no livro de memórias homônimo) soaria absurdo demais, mesmo para os padrões ficcionais de Hollywood. E, claro, o experiente Lee não caiu na armadilha que seria entregar um filme biográfico de cunho dramático e datado. O diretor consegue a proeza de realizar uma comédia policial com nuances da blaxploitation dos anos 1970, altamente política e atual.
“Infiltrado na Klan” é baseado na complexidade humana de seus personagens e não necessariamente na tomada imediata de posições. Isso desarma o público frente à questão racial e permite um envolvimento empático, que caminha em direção à conscientização enquanto a história se desenvolve. Spike Lee critica o racismo sem apelar para o recurso fácil que é demonizar pessoas ou atitudes racistas. É como se o diretor usasse a mesma estratégia de seu protagonista: desarmar a situação de dentro para fora e, assim, revelar as contradições do racismo estrutural.
O policial Stallworth (John David Washington), à princípio, é alheio à militância negra e tende a atitudes políticas moderadas. Ao ingressar no departamento de inteligência da polícia, ele é enviado sob disfarce à reunião de um grêmio estudantil, para investigar possíveis tendências radicais dos Panteras Negras. É ali que Ron tem seu primeiro contato com o movimento político e social da comunidade negra.
Em uma das cenas mais bonitas do filme, Spike Lee coloca os rostos dos personagens negros no centro do enquadramento, realizando zoom-ins durante os discursos, situando aqueles que falam (e escutam) como protagonistas de suas próprias histórias e lutas. Claramente, o objetivo é mostrar uma semente sendo plantada tanto em Ron quanto nos espectadores.
Pouco tempo depois, o policial encontra o telefone do comitê local da KKK e resolve estabelecer contato. Ele se passa por um homem branco em conversas telefônicas tão inteligentes quanto hilárias e absurdas, e ganha a confiança dos supremacistas, sendo finalmente convidado a ingressar na organização. Ron então treina Flip (Adam Driver), seu parceiro branco e de origem judaica no departamento de inteligência, para assumir sua identidade e frequentar os encontros da KKK. Flip, por sua vez, só se dá conta do risco que está correndo quando fica cara-a-cara com o antissemitismo e toda sua violência. Outra semente é plantada.
Com situações-limite que vão do humilhante ao risível, a investigação de Ron e Flip segue cada vez mais perigosa e reveladora até chegar ao seu desdobramento final – que realmente parece “coisa de filme”. A trilha sonora e a direção de arte impecáveis, além de um elenco inspirado, ambientam a cultura negra dos anos 1970 de uma maneira que só Spike Lee saberia fazer: como um modo próprio de estar no mundo.
Quando o sentimento de “final feliz” começa a bater, somos arrebatados com um desfecho inesperado. Parte da crítica julgou o final do filme didático: o diretor teria feito uso de um recurso redundante que apenas reforçaria o que já estava na narrativa. Contudo, vale argumentar que a catarse final é menos sobre a veracidade dos fatos e muito mais sobre a atualidade dos mesmos. É a conclusão de que, passados mais de 40 anos, a extrema-direita adotou uma aparência tão democrática que conseguiu eleger Donald Trump e Bolsonaro, ambos sob aplausos de David Duke. Luta que segue. E, certamente, o cinema tem o seu papel nessa trajetória.