Banqueiros, doleiros, delegados, políticos e policiais federais estão com as entranhas de seus sistemas expostas em “O Mecanismo”, a nova série de José Padilha (“Narcos” e “Tropa de Elite”) e Elena Soárez (“Treze dias longe do sol”) para a Netflix. Estrelada (a princípio) por Selton Mello e Enrique Diaz, a produção é “inspirada” na Operação Lava-Jato e chega à plataforma de streaming nessa sexta (23), enquanto os fatos que lhe deram origem continuam a se desenrolar em frente aos olhos atentos dos brasileiros. Porém mais do que contar
José Padilha conta que para a reconstrução do “maior esquema de corrupção do Brasil” foi imprescindível contar com a colaboração do jornalista Vladimir Netto, filho de Miriam Leitão e autor do livro “Lava Jato – O juiz Sergio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil”, como fonte. “Ele entrevistou todo mundo nas carceragens, um monte de juízes tanto na segunda estância quanto os de Curitiba, como o [Sergio] Moro, os procuradores e os políticos em Brasília, como o Delcídio [do Amaral, ex-Senador do PT]. Entrevistou gente que eu não posso nem dizer. A quantidade de informações que ele tem é brutal, tanto o que está no livro e o que não está”, comenta o diretor durante a pré-estreia da série, realizada no Copacabana Palace.
Além do material coletado por Vladimir, Padilha também reforça que a própria produção de “O Mecanismo” conduziu uma série de entrevistas próprias, para auxiliar na construção do roteiro. “Algumas com autorização e outra sem. [O delegado da Polícia Federal] Jorge Pontes foi me dizia quem era quem, me dando um mapa da PF. Mas ele não é uma fonte porque não participa da inivestigação da Lava-Jato e não sabe dizer o que está acontecendo melhor que o Vladimir, por exemplo. Pelo menos não naquela ocasião”, explica.
Dentre os personagens reais apresentados por Jorge, Padilha cita o delegado Gerson Machado, figura que não esteve regularmente na mídia como outros agentes, mas começou as investigações para a Operação e serviu de base para o Ruffo de Selton Mello. Comentando ainda que negou qualquer tipo de apoio oferecido pela Polícia Federal para as gravações, o diretor ainda é enfático ao avisar: “O Brasil não é um país feito de bandidos e mocinhos”.
Próximo a ele estava Maria Ribeiro, que chama o diretor de “amigo-irmão” e também participa como coadjuvante da série: “Minha personagem vai crescer mais na segunda temporada. Agora ela ainda é pequena, mas vai desenrolar depois”. Opa, Maria, acho que isso era segreo, hein. “Eu não podia ter falado isso? Ai, meu deus!”, emendou enquanto balançava a cabeça e tampava a boca.
“Espero que as pessoas vejam uma série, sem associar a nada político. Eu realmente não estou me sentindo em nenhuma atuação política ao fazer essa série. Até porque eu gostaria que o Lula fosse candidato”, disse a atriz sobre o papel que “O Mecanismo” pode desempenhar em um ano eleitoral. “Eu acho que sempre que uma obra é inspirada em fatos reais, como é essa série e como é o ‘Tropa de Elite’, nós temos a oportunidade de vermos muitas situações que estão tão neutralizadas, mas você nem se dá conta. Realmente, temos uma corrupção no país inacreditável e também rola uma seleção de quem você vai punir”, enfatisa, completando: “Tem que ser algo apartidário, senão é menos legal e menos importante como um produto de ficção”.
Fato é que “O Mecanismo” tem potencial para se tornar uma das séries carro-chefe da Netflix, seguindo o sucesso de “Narcos”. Quem diz é o Diretor Executivo de Conteúdo da plataforma, Ted Sarandos, que comentou exclusivamente com a Híbrida como a série protagonizada por Wagner Moura se tornou o modelo ideal de investimento para o serviço: “Ela foi um exemplo claro de como ser bem aceita tanto em nível local quanto global. Foi um fenômeno! Assim que o José [Padilha] me disse que ela tinha a ideia para outra série, nós tratamos logo de conversar sobre isso e ter certeza de que aconteceria”.
PRIMEIRA IMPRESSÕES
A princípio, é o delegado Marco Ruffo (Selton) e o doleiro Roberto Ibrahim (Diaz) que protagonizam o eixo principal de “O Mecanismo”, em uma perseguição entre gato e rato que remete aos trabalhos já conhecidos de Padilha. Mas quando os esquemas do doleiro são passados à instância superior, a investigação fica a cargo de Verena Cardoni (Carol Abras), enquanto Ruffo sai de cena como um exemplar funcionário do mês. Ou pelo menos é assim nos três primeiros episódios disponibilizados para a imprensa.
É difícil mensurar até que ponto os personagens serão aprofundados ao longo da série com base em apenas uma fração da temporada, mas há vários ângulos que podem e devem ser explorados ao longo de “O Mecanismo”.
Sendo um produto de entretenimento, como Maria Ribeiro fez questão de frisar, o fato de os nomes da série serem similares mas não idênticos aos da realidade tem seu prós e contras. Por um lado, é bom que o público geral não encare a produção como um jornal factual, o que além de perigoso seria também enfadonho para muitos dos milhares de usuários da Netflix. Por outro, os que já estão mais familiarizados e atentos ao desenrolar da Lava-Jato podem achar um pouco óbvios demais os pseudônimos escolhidos, como o China da Federal, a estatal PetroBrasil ou o fato de Ibrahim ser de origem libanesa como Alberto Youssef, o pivô inical da operação original.
Outro aspecto de “O Mecanismo” que pode parecer maçante para o público que acompanha os jornais é a forma didática com que o esquema de corrupção é mostrado, característica reforçada pela narração dos personagens principais. Mas aqui, é preciso lembrar de novo a dimensão do alcance proporcionado pela Netflix: além de chegar a uma grande parte dos brasileiros mais desavisados e negligentes com o aspecto político do país, a série também será distribuída para mais de 100 outros países. E se a Lava-Jato já é capaz de dar um nó na cabeça de quem a acompanha desde o início, imagine como não deve ser para um gringo.
Outros aspectos que merecem ser abordados é o impacto da operação nas vidas pessoais dos investigados e dos investigadores. A fórmula já foi explorada por Padilha em “Narcos” e laureada com o desempenho de Sarah Paulson em “American Crime Story: The People vs. O. J. Simpson”, onde o machismo enfrentado pela delegada Marcia Clark se torna quase um personagem à parte ao longo da produção.
No âmbito específico da Lava-Jato, ainda há muito pano para manga. É impossível pensar o desenrolar desse esquema sem levar em consideração a manipulação da mídia e o papel que a pressão popular vem desempenhando nas investigações, para o bem ou para o mal. E espera-se de Padilha que esse jogo seja colocado de forma bem clara na mesa, uma vez que a distribuição da Netflix permite uma abordagem mais livre de concessões nesse sentido. Até a própria figura de um certo delegado-estrelinha e a sua campanha pessoal precisam ser abordadas se o compromisso de dissecar a Lava-Jato imparcialmente for real.
Assista ao trailer de “O Mecanismo”: