Híbrida
CINEMA & TV

“Normal” investiga as pressões do gênero sobre homens e mulheres

No 8 1/2 Festa do Cinema Italiano, "Normal" investiga as pressões do gênero sobre homens e mulheres (Foto: Divulgação)

Por algum tempo, a cineasta Adele Tulli resolveu pegar caronas aleatórias pela Itália e perguntar às pessoas com quem dividia uma corrida do Blá Blá Car como os estereótipos de gênero impactaram suas vidas. As respostas, parte de um curso PhD que ela fez em Londres sobre o tema, deram origem ao documentário “Normal”, em exibição no 8 ½ Festa do Cinema Italiano, cujos filmes estão disponíveis gratuitamente no streaming do Looke até a próxima quinta-feira (10).

Apesar de já ter feito dois documentários – “365 Without 377” (2011) e “Rebel Menopause” (2014) -, Adele afirma que esse foi o seu projeto mais desafiador até o momento. Até porque, a tarefa de capturar pelas lentes de uma câmera a dimensão com que os estereótipos de gênero impostos sobre homens e mulheres afetam diretamente todas as fases da vida de um ser humano é de um esforço hercúleo.

“Parte de nós quer aceitar, se conformar e satisfazer as expectativas das pessoas ao nosso redor. Existe um tipo de medo, sacrifício e dor ao fazer isso, porque você começa a desistir de uma parte de si mesmo. Essa era a exata contradição que eu estava buscando”, explica a diretora durante uma conversa por telefone com a Híbrida.

Cena de "Normal", documentário de Adele Tulli em exibição no 8 1/2 Festa do Cinema Italiano (Foto: Divulgação)
Cena de “Normal”, documentário de Adele Tulli em exibição no 8 1/2 Festa do Cinema Italiano (Foto: Divulgação)

A primeira cena de “Normal” mostra uma menina tendo suas orelhas furadas pela primeira vez ainda na primeira infância. Enquanto o médico e a mãe da criança a encorajam ao longo do processo, é possível ver no seu olhar um misto de medo, dor e confusão com aquele processo. A partir daí, Adele mergulha em dinâmicas sociais que vão de contextos óbvios, como concursos de miss e esportes, até percepções sutis dessas imposições de gênero.

Em baladas, casamentos e até treinamentos que ensinam homens a flertar (de maneira extremamente machista) com mulheres e outros para mulheres “aprenderem” a serem esposas (“O marido pode ser considerado um segundo filho”) (!!!), “Normal” mostra as diferentes pressões de gênero às quais somos submetidos, querendo ou não.

Abaixo, Adele explica como foi o processo de pesquisa para o longa-metragem, o que a surpreendeu e como ela enxerga o avanço dos movimentos sociais frente o conservadorismo global. E assista ao filme gratuitamente clicando aqui.

Pôster de “Normal”, documentário de Adele Tulli que investiga as pressões dos estereótipos de gênero (Clique na imagem para assistir ao filme)

 

HÍBRIDA: Como você escolheu os locais e situações que iria filmar para representar essa dualidade do gênero?

ADELE TULLI: Houve muita pesquisa por trás do filme, porque eu o desenvolvi como parte de um PhD que fiz em Londres. A primeira parte da minha pesquisa foi viajar pelo Blá Blá Car, com pessoas aleatórias e iniciando conversas e diálogos aleatórios sobre qual o impacto que estereótipos de gênero tiveram em suas vidas.

Então, comecei a juntar ideais sobre esses cenários diferentes. O que eu tinha em mente era representar as diferentes idades e os momentos mais comuns da vida e as situações sobre as quais não pensamos muito, mas são repletos de dinâmicas de gênero – as situações comuns de pessoas indo à praia, casamentos, festas ou jogando algum esporte – e ver quais eram as dinâmicas em cada situação que molda nossas vidas.

H: Mesmo com a pesquisa, alguma situação ou pessoa chegou a te surpreender? Particularmente, achei engraçado você ter capturado um casal brigando numa boate.

AT: Houve vários momentos surpreendentes, no sentido de que esse foi um filme bem diferentes dos [meus] anteriores. Esse foi mais difícil porque eu estava seguindo apenas uma ideia, tentando explorar o sistema e não as normas da sociedade. Às vezes, as coisas aconteciam e eu só ia reparar na sala de edição o quão poderosa ela era, como a [cena inicial] da menina colocando brincos.

Obviamente, eu queria aquela cena porque esse é um grande ritual de passagem e estava esperando que a garota chorasse ou algo do tipo. Então, quando vi os olhos dela e toda a mistura de medo e desejo, quase imperceptível porque foi tão sutil, foi aquela emoção confusa que temos com as normas sociais. Parte de nós quer aceitar, se conformar e satisfazer as expectativas das pessoas ao nosso redor. Existe um tipo de medo, sacrifício e dor ao fazer isso, porque você começa a desistir de uma parte de si mesmo. Essa era a exata contradição que eu estava buscando.

Eu enxergava histórias e queria ver como o sistema funciona da forma mais sutil e quase invisível

H: Em um momento do filme, nós vemos várias meninas se enfileirando para abraçar um garoto e vemos como ele trata todas de forma igual. Quem era o rapaz? 

AT: Ele é um youtuber italiano, Anthony Padilla. No começo, eu estava procurando por groupies de boybands, mas acho que essa é a versão contemporânea disso.

H: Uma das cenas mais perturbadoras é quando vemos um rapaz tendo aulas de como flertar com mulheres e, nesse processo, aprende várias ideias machistas. Como foi filmar isso? 

AT: Eu percebi que existem muitas organizações que são sobre conquistar mulheres. Eles são chamados de “artistas das cantadas” e é um fenômeno global e bem estabilizado. Quando eu descobri isso, comecei a perguntar para algumas pessoas se eu poderia filmar suas sessões. O rapaz bonito é o treinador e está dando conselhos ao outro cara. Essa foi uma situação real em que ele estava treinando os rapazes e então eles iam praticar o que aprenderam com garotas na rua.

Eu quis fazer [essa cena] mais abstrata e menos realista, porque de certa forma ela era muito extrema e claustrofóbica. Também estava interessada na reação do rapaz “frágil”. Como homem, ele não tinha permissão para ser inseguro e vulnerável, ele foi forçado a estar no controle de forma dominante, e isso estava lhe causando um enorme estresse. Isso é tão forte, porque em termos de masculinidade é muito difícil [para ele] sair daquele grupo e da pressão daquilo.

Mães fazem exercício em parque público durante cena de “Normal” (Foto: Divulgação)

H: Quando você começou a se interessar pelos estereótipos de gênero e abordá-los num filme? 

AT: É um assunto que me interessa há muitos anos, além do fato de que meus outros filmes foram sobre gênero e e eu sou parte dos movimentos feminista e LGBTQ. É algo que faz parte do meu cotidiano, depois de ter estudado Judith Butler e outras teorias sobre gênero. À medida que as pessoas falavam [sobre suas experiência], eu enxergava histórias e queria ver como o sistema funciona da forma mais sutil e quase invisível. Eu queria ver se isso poderia ser traduzido em linguagem audiovisual. Foi especialmente difícil fazer um filme sem uma linha do tempo linear, no qual muitas das pessoas não podiam ser preparadas. Então, foi tudo aberto ao que pode acontecer na vida.

H: Você acha que as novas gerações têm melhorado nessa relação entre masculino e feminino? 

AT: É interessante, porque de uma forma nós vemos as coisas mudando bastante, quando ser gay em gerações passadas não era sequer uma possibilidade. E o mesmo acontece com os estereótipos de gênero – muitas coisas estão mudando, como o tanto de jovens que não querem aceitar a binaridade de gênero e querem ser livres ou fluídos para viverem como gostam, sem serem colocados dentro de uma caixa. Isso é um bom sinal. Por outro lado, temos muitos movimentos conservadores acontecendo também. Você vê que quando o progresso é feito, há muita resistência e a parte conservadora da sociedade se fortalece, como os movimentos neo católicos que estão mais obcecados com questões de gênero e LGBTQ.

É preciso estar atento porque por mais que você conquiste um direito, você também pode perdê-lo

H: Essa é uma tendência muito real no Brasil dos últimos anos.

AT: Sim, eu imagino como deve ser difícil aí com Bolsonaro. Como de costume, também tem se espalhado pela América e pela Europa. Você nunca pode descansar em algumas lutas por direitos, como ao aborto. Você nunca pode dizer que isso acabou. É preciso estar atento porque por mais que você conquiste um direito, você também pode perdê-lo.

H: O filme foi feito na Itália, mas você morou muito tempo na Inglaterra também. Percebeu alguma diferença gritante no papel social do gênero entre os dois países?

AT: Eu estava pensando em como esse filme seria recebido em outros países, mas de certa forma o binarismo de gênero está em todas as sociedade, de formas e maneiras diferentes. Há diferenças, mas eu acho que você pode encontrar a dinâmica das normas de gênero e sentir a pressão de se conformar a elas em todas as sociedades. O discurso geral é esse.

Notícias relacionadas

“Alice Júnior” vai ganhar sequência com a mesma equipe

Revista Híbrida
1 ano atrás

75º Globos de Ouro: muita pompa para pouco resultado

Maria Eugênia Gonçalves
7 anos atrás

Reboot de “Queer as Folk” ganha fotos e data de estreia

Revista Híbrida
3 anos atrás
Sair da versão mobile