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“Rafiki”, o drama lésbico que desafiou a criminalização LGBTQ no Quênia

"Rafiki", o drama lésbico que desafiou a criminalização LGBT no Quênia (Foto: Divulgação)

Toda pessoa quer viver uma história de amor, certo? Em um mundo LGBTfóbico, infelizmente, não são todos que pode,. Quando estreou no Festival de Cannes de 2018, o longa- metragem “Rafiki” fez história por dois motivos: 1) foi a primeira produção cinematográfica queniana a ser incluída no lineup do evento; e 2) por ser um romance lésbico vivido em um país não seguir a orientação sexual “tradicional” é crime punível por lei.

Em seu país de origem, “Rafiki” foi censurado por “promover o lesbianismo no Quênia, ao contrário da lei e dos valores dominantes dos quenianos”, segundo o Conselho de Classificação de Filmes do Quênia. Ainda assim, o título foi exibido em diversas mostras e festivais internacionais e, agora, está em cartaz nos cinemas do Brasil, depois de uma passagem ovacionada pelo Festival do Rio e a tempo do Mês da Visibilidade Lésbica.

Segundo longa da diretora e roteirista Wanuri Kahiu (39), o filme foi inspirado no conto “Jambula Tree”, da premiada escritora ugandense Monica Arac de Nyeko. Rafiki significa “amiga(o)” em suaíli e, não coincidentemente, é um título preciso para a história. Qual menina lésbica ou bissexual nunca teve que chamar sua namorada de “amiga” em uma situação social ou familiar, graças à pressão da sociedade e o julgamento alheio?

Baseado no conto “Jambula Tree”, "Rafiki" conta a história de um romance lésbico no Quênia, onde relações com pessoas do mesmo gênero é crime previsto em lei (Foto: Divulgação)
Baseado no conto “Jambula Tree”, “Rafiki” conta a história de um romance lésbico no Quênia, onde relações com pessoas do mesmo gênero é crime previsto em lei (Foto: Divulgação)

Mesmo em países onde a homossexualidade não é institucionalmente criminalizada, como no Brasil, o sentimento de culpa, vergonha e pecado da moral cristã e colonial continua incidindo sobre nossos corpos. O título traz o peso de uma sociedade que impõe a heterossexualidade compulsória aos nossos afetos, e que nos pune quando não correspondemos às suas expectativas. Mais do que sinônimo de “afeto”, Rafiki, a amiga, é uma necessidade para a nossa segurança.

Na África, ter relacionamentos com pessoas do mesmo gênero, seja você gay, lésbica ou bissexual, é crime previsto em lei por 35 país. Uma lei do período colonial, a mesma usada em grande parte das outras nações, pune relacionamentos entre pessoas do mesmo gênero com até 14 anos de prisão no Quênia e, segundo dados oficiais, pelo menos 534 pessoas foram presas entre 2013 e 2017. Já a Comissão Nacional de Direitos Humanos de Gays e Lésbicas registrou mais de 1.500 ataques à população LGBT do país desde 2014. No início deste ano, a Suprema Corte voltou a discutir essa legislação, mas decidiu por manter a criminalização.

Mas, voltando à esperança e ousadia de “Rafiki”, o filme mostra duas garotas de Nairóbi, Kena (Samantha Mugatsia) e Ziki (Sheila Munyiva), filhas de dois candidatos de uma eleição. O pai da primeira é comerciante e o da segunda é um rico empresário. Nesse universo, a situação se complica quando elas se apaixonam uma pela outra e são alvos de um escândalo e da inevitável violência da comunidade em que estão inseridas.

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Apesar das questões sensíveis, o drama é contrabalançado com uma fotografia colorida e jovem, que está presente no cenário, nos figurinos e nas músicas que embalam “Rafiki”. Essa estética, à qual os críticos vêm chamando de afropop, traz energia, movimento e uma certa leveza para a história.

Com estética afropop, “Rafiki” é estrelado por Samantha Mugatsia e Sheila Munyiva, como Kena e Ziki (Foto: Divulgação)

“Rafiki” não chega a se aprofundar em como essa sociedade anti-LGBT do Quênia é também fruto da colonização européia na África. Pelo menos não de forma explícita. Através de cenas como um sermão na igreja e da ideia de uma “cura” para a homossexualidade, essa realidade acaba encontrando seu eco. Da mesma forma que ecoa por personagens caricatos até para nós, brasileiros, como os arquétipos da fofoqueira da rua e dos homofóbicos com discurso religioso sobre preservação dos “bons costumes”.

Kahiu não deixa dúvidas de que o Estado criminaliza LGBTs no Quênia, mas são as pessoas que zelam por essa proibição. É Impossível assisti-lo e não enxergar semelhanças com a sociedade brasileira de 2019. Eu gostaria muito de pensar que esse tipo de censura e proibição está longe da nossa realidade. No entanto, reservada todas as diferenças entre os dois países, a vigilância das pessoas em nome da “moral e dos bons costumes”, a discriminação, a falta de apoio da família, a violência e a cobrança pela heterossexualidade compulsória se fazem presentes em ambos os territórios.

Eu vi o mais vil dos comentários sair de pessoas que eu amo

– Wanuri Kahiu, diretora de ‘Rafiki’

Em um universo onde filmes de temática queer produzidos na África permanecem poucos e distantes entre si, “Rafiki” acaba tendo impacto e mostrando o poder transgressor da arte em tempos difíceis. Em entrevista ao The Guardian, no início deste ano, Kahiu confessou que foi perseguida, ameaçada de prisão e sofreu com ofensas a ela e ao filme, inclusive por membros de sua própria família. “Eu vi o mais vil dos comentários sair de pessoas que eu amo. Tem sido incrivelmente desafiador”, declarou.

Outro gol de Kahiu é sua visão crítica sobre a ótica colonialista com a qual o ocidente enxerga a África, resumindo o continente a morte, doença e pobreza. De acordo com a diretora, ela está interessada em disputar esse imaginário e trazer para o cinema uma perspectiva mais positiva. “Eu acho que há mais exemplos de alegria do que remorso na África. Se não virmos mais imagens de nós mesmos como pessoas esperançosas e alegres, não trabalharemos para isso. Eu realmente acredito que ver é acreditar.”

Assista abaixo ao trailer de “Rafiki”:

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