Até bem pouco tempo, facilmente conseguíamos encontrar alguns vídeos da Ariadna Arantes falando em suas redes sociais dos desafios para entrar no mercado formal de trabalho, da rejeição por artistas e ex-brothers, e das dificuldades financeiras que isso gerava. Nem mesmo a suposta fama após sua participação como a primeira mulher trans no Big Brother Brasil 11 foi capaz de lhe garantir contratos ou parcerias. “Recebidos não pagam minhas contas, eu preciso comer”, ela disse em determinado momento.
O caso de Ariadna nos chama atenção para a distância enorme no acolhimento e fortalecimento das pessoas trans na mídia em comparação com representantes de outras siglas da comunidade LGBTI+. Ou pior ainda, do quanto as pessoas não conseguem se sentir representadas por travestis, mulheres e homens trans.
A participação recente de Ariadna em No Limite denuncia também que quando se trata de mulheres trans e travestis em reality shows, a comunidade LGBTI+ não tem tanto interesse assim em assistir, comentar, interagir e engajar. Inclusive, o destaque que ela teve desde o início dessa edição foi narrando sua precariedade e prostituição. Na semana seguinte, foi excluída. Por unanimidade.
A forma como a transfobia recreativa se manifesta também se dá pela espetacularização da nossa vulnerabilidade, usando nossos corpos para capitalizar em cima da dor e explorar a subalternidade das identidades trans. A intenção, parece, é dificultar nosso acesso a outros espaços e a possibilidade de sermos vistas a partir de uma lente positiva, como bons exemplos.
Nesse caso específico, estou falando de uma mulher trans e negra, que nasceu na periferia do Rio de Janeiro e é ex-profissional do sexo, vítima do êxodo travesti, um processo migratório nacional e internacional pela fuga da violência e da precarização. Ariadna teve uma oportunidade única em 2011, mas sua taxa de rejeição fez com que saísse ainda na primeira semana, com 49% dos votos.
Ariadna foi julgada e massacrada por “mentir” sobre sua “condição”, como se pessoas trans fossem obrigadas a declarar sua identidade e avisar aos desavisados para terem “cuidado ao se aproximar” – seja para amizades ou qualquer tipo de relacionamento emocional e/ou afetivo.
Naquele momento pós-BBB, ela fez algumas capas de revista, posou nua, deu entrevistas, apareceu em diversos programas de televisão e jornais, gozou da posição de “sex symbol” no País que mais consome pornografia trans do mundo, mas o foco era sobre chafurdar e erotizar seu corpo, satisfazer a curiosidade sobre sua cirurgia de redesignação sexual (CRS) e outras questões extremamente violentas e invasivas, sempre autorizadas ao corpo trans, “público” no Brasil.
Nem mesmo nós a abraçamos naquele momento. Não fomos capazes de alçá-la a um lugar de prestígio público, para ajudar na própria representatividade que hoje tanto gostamos de apontar em alguns corpos (em detrimento de outros). O pior é que isso se repete 10 anos depois, logo após um gay se tornar “campeão de honra” do BBB 21. Ariadna, por sinal, segue sendo a única trans a quem foi dada permissão para morar na “casa mais vigiada do Brasil”.
Tenho refletido muito sobre representação e representatividade, no momento em que vemos pessoas trans buscarem humanização e validação através da fama ou da mídia. Me pergunto se essas pessoas terão o mesmo alcance, acolhimento e prestígio que qualquer outro membro da comunidade LGB cis. Porque o que temos visto até aqui é a presença de trans sendo usadas para reforçar estereótipos e perpetuar estigmas sobre violência e polêmicas, respondendo ao imaginário social sobre o que é ser uma travesti – quase sempre a partir de um referencial enviesado.
Apesar de ter voltado aos holofotes, Ariadna não foi a única pessoa trans em um reality brasileiro de alcance nacional, mas as outras participação também não tiveram um caminho tão diferente assim. Ainda no ano passado, Tryanda Verenna se tornou o segundo homem trans a disputar o MasterChef, na Band, depois da estreia de Thales Alves, em 2018.
No SBT, Bianca Soares também teve seus cinco minutos de fama na 4ª edição da Casa dos Artistas e terminou conhecida como “a boneca da Casa”, sendo eliminada também na primeira semana, para depois fazer filmes adultos e entrevistas onde a transfobia sempre foi a tônica das perguntas. Ela segue anônima e quase esquecida nas rodas de influenciadores que defendem a presença de pessoas trans “em todos os espaços”.
N’A Fazenda, transmitido na Record, tivemos Nany People (3ª edição) e Leonora Áquila (5ª). Ambas já conhecidas na mídia e com participações pouco representativas para a luta de pessoas trans na busca por respeito. À época, nenhuma delas parecia engajada ou disposta a pautar questões para além dos possíveis ganhos pessoais. Nany não durou muito em sua edição, enquanto Leonora foi até a final, mas afirmou em entrevista que estava saindo “muito deprimida” do programa.
Em uma de suas participações no A Tarde É Sua, Leonora chegou a desabafar sobre o episódio. “Na ocasião, ouvi claramente pelo headset eles me chamando de ‘traveco’ e um falando para o outro: ‘olha aí o que você gosta’. Fiquei quieta porque era tão surreal aquilo que você não sabe como reagir e deixei passar”, disse. “No dia seguinte, fui fazer uma obrigação de limpar o cavalo e ouvi uma coisa que não posso repetir aqui porque foi tão baixo… Foi quando eu explodi.”
Vimos ainda Sangalo, Rochelle Santrelly e Letícia Dayer no Glitter – Em Busca De Um Sonho, reality realizado na TV Diário com direção da Lena Oxa, travesti icônica do Ceará. Para além de memes como “Bicha, a senhora é destruidora mesmo hein viado!” (Sangalo) e “É choque de monstro, viu querida” (Santrelly), recentemente as duas participaram do comercial de uma cerveja local, mas não tiveram espaço para além da transfobia recreativa que aprisiona pessoas trans em memes jocosos e desumanizantes – Bambola Star que o diga! Letícia, hoje, ainda apresenta um programa na web.
https://www.youtube.com/watch?v=ENXp0FPx0Rs
Ano passado vimos a estréia do Born To Fashion, uma produção do E! que pretendia revelar modelos transfemininas com várias participantes extremamente talentosas – obviamente, ainda dentro do padrão de magreza que o mundo da moda busca. Até hoje, há pessoas que não sabem da existência do programa ou lembram o nome de mais de três participantes – e olha que eram dez travestis/mulheres trans – além da Alice Marcone, cantora trans que dividiu a apresentação com a top Laís Ribeiro.
Neste caso específico, o programa teve diversas falhas em sua condução. Foram reveladas transfobias durante as gravações e o padrão cis-centrado como balizador do programa e de seus desafios semanais. Ganhou repercussão pública o caso que envolveu o estilista Alexandre Herchcovitch no episódio em que disse ser “um pouco travesti”.
Ainda no ar, o De Férias Com o Ex trouxe Tarso Brant em sua edição 2021 com celebridades, onde fica nítido o processo de isolamento ao qual ele foi posto alí. Principalmente ao explorarem suas inseguranças e fragilidades em meio a uma disputa de quem está em busca de pegação, fervos e sexo. Tudo ali remete à busca desesperada por alguém para transar, mas desde que tenha “pau”. E, até então, seu corpo (trans) não tem sido visto como elegível para se relacionar publicamente pelos outros participantes que exotificam e infantilizam a relação com ele.
O que se revela na presença de pessoas trans em reality shows ainda é o fetiche perverso que goza com a exploração da vulnerabilidade desses indivíduos, como a humilhação pública e violência a que somos submetidas na frente e atrás das câmeras. Além do linchamento virtual nos tribunais das redes sociais e que contribui ainda mais para a manutenção da transfobia contra anônimas, que no BBB da vida real seguem invisíveis. E obviamente a rejeição por parte da comunidade LGBTI+.
Aquilo não é militância e não tem compromisso nenhum com nossas vidas. Visibiliza questões, mas não ajuda no enfrentamento. É por isso que eu e muitas outras pessoas trans não conseguimos ver como poderia ser saudável a presença da população T em um tipo de entretenimento que em nada tem contribuído para a nossa humanização na esfera social. Pelo contrário, a vilanização, a caricaturização e espetacularização de vidas trans é o que fica aparente nesses ambientes extremamente favoráveis à transfobia, deixando uma mensagem preocupante para quem ainda sonha em participar desse mundo.
Afinal, quem está lucrando com a nossa participação, já que não somos nós?