Lançada na última sexta-feira (18), a música “Lili”, da dupla sertaneja Pedro Motta e Henrique, rapidamente foi identificada como transfóbica ao falar de um homem apaixonado por uma travesti. “Agora eu entendo por que ela não queria fazer amor”, diz a letra, que continua: “Só que ela não tinha o que uma mulher tem”. Entre os versos que não vamos divulgar aqui na íntegra, fica clara a ideia de que o eu lírico foi “enganado” e está de coração partido porque o amor da sua vida é “um travesti” (sic).
Logo após seu lançamento, o nome da dupla rapidamente foi parar entre os assuntos mais comentados do Twitter brasileiro, com a grande maioria das mensagens criticando o tom claramente transfóbico da música – por difundir a ideia que travestis não são “mulheres”, usar o pronome errado e todo o resto. Entretanto, ainda há quem defenda o conteúdo da letra, com a já clássica desculpa de que aquilo não passa de uma canção bem humorada e piada.
O problema é que algumas piadas matam, literalmente. Chega a ser redundante ter que falar sobre isso aqui de novo, mas vou lembrar que o Brasil segue por 12 anos como o líder mundial no assassinato de travestis e transexuais. Paralelamente, somos também o País que mais consome pornografia com essas pessoas. A conta não fecha.
Basta ler atentamente aos inúmeros boletins da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) ou às notícias sobre assassinatos dessa população para ver que 87% das vítimas trans se identificavam enquanto travestis e 80% dos casos apresentam requintes de crueldade, identificado pelo uso excessivo da força ou pela associação entre dois ou mais métodos de violência durante o assassinato.
No dossiê de 2019, por exemplo, a Antra frisa: “Essa conquista de espaços altruísta que as travestis
reivindicam (ainda nesse cenário violento que vivem e com todas as adversidades) também infere na
violência perpetrada por esses homens que não veem nenhum problema em ser o seu cliente na calada
das noites ermas e escuras, ou ainda na garantia do sigilo da internet, visando satisfazer seus desejos
sexuais proibidos. São esses mesmos que repudiam encontrar ou transitar nos mesmos espaços que
as travestis durante o dia.”
Fica exatamente aí um dos principais problemas de “Lili”: a perpetuação da ideia de que é melhor sofrer por um “coração partido” do que amar uma travesti. Sem me estender muito pela análise semântica da música, mas não é possível assumir que Lili tinha tudo o que o eu lírico buscava em alguém, a ponto de ser “o amor da sua vida”? Mesmo assim, é a sua identidade travesti que invalida e anula todas as outras características. Ela seria amada, se não fosse travesti. Isolar e renegar afeto, assim como a violência física, é também uma forma de matar.
Depois dos comentários e notícias denunciando o tom da música, Pedro Motta e Henrique foram ao Instagram publicar um vídeo que poderia ter sido um mea culpa – Marília Mendonça, infinitamente mais relevante que a dupla, o fez de forma muito sábia há apenas alguns meses -, mas não foi.
Postado no domingo (20), o comunicado de 1 minuto e 7 segundos foi gravado em tom animado para comemorar “o sucesso da Lili” e “esclarecer” que, “de forma alguma”, a dupla é “homofóbica”(sic), porque “inclusive tem muitos amigos” (sério, foi essa a expressão e o pretexto usados). Eles voltam a usar o pronome masculino para se referir à travesti, o que corrigem depois. “Ou dA travesti, como vocês estão falando.” O pedido de desculpas vem apenas aos 53 segundos, direcionado “a vocês que estão nos interpretando mal”.
O vídeo termina com um sorriso no rosto dos dois e mantém a dúvida se eles realmente entenderam o erro da música, já que continuam dizendo que não foram instruídos para isso, mesmo depois dos milhares de comentários. Pedir desculpas pelo “erro de interpretação” do público não chega a ser exatamente o reconhecimento de ter uma letra ofensiva. E, com mais de 100 mil plays e outras duas mil curtidas, a publicação já é a mais vista no perfil da dupla.
Usar discurso de ódio ou ofender membros da comunidade LGBTI+ já se provou uma ótima ferramenta de engajamento no Brasil, inclusive há candidatos que se elegeram apoiados nisso ao longo dos últimos anos. É por isso que, antes de escrever esse texto, fiquei na dúvida se valeria a pena dar ainda mais palanque para uma música como essa e para os artistas que a escreveram.
Ao mesmo tempo, é ultrajante que “Lili” permaneça disponível até agora, em todas as ferramentas de streaming, ganhando play atrás de play e capitalizando em cima de um discurso transfóbico e claramente ofensivo. Parece não haver qualquer sinal de mobilização dos órgãos oficiais e plataformas (cm exceção da Deezer) para sequer colocarem uma classificação indicativa no vídeo e consequentemente diminuir seu alcance, ou pelo menos não com a mesma eficiência em que conseguem censurar um clipe da Pabllo Vittar como “impróprio para menores”.
Se você chegou até aqui na esperança de encontrar um link para ouvir “Lili”, sinto em dizer, mas perdeu a viagem. Ao invés de ajudar na divulgação dessa música, que já foi mais longe do que deveria ter ido, aproveito o espaço e a oportunidade para direcionar seu olhar e seus ouvidos a outro fenômeno sertanejo: Alice Marcone, travesti, atriz e cantora, cujo single “Pistoleira”, em parceria com Gabeu, é certeza de agradar qualquer fã do gênero.
O discurso de “precisamos ocupar todos os espaços” já está ficando cansativo, é verdade, mas não deixa de ser real. Seria muito fácil cair na armadilha de taxar o sertanejo como um gênero intrinsecamente preconceituoso, mas a verdade é que ele é apenas uma expressão usada por pessoas. O problema não está nele, exatamente, mas nelas. E se elas não querem mudar, cabe a nós, enquanto público, não consumir o que elas têm a oferecer.