“Sapatão foi a palavra que eu mais escutei durante a minha infância e adolescência por não performar uma feminilidade esperada para o meu papel de gênero. Até então, não sabia bem por que me chamavam daquilo e, até por uma certa inocência, achava que sapatão era quem tinha pé grande (no caso, calço 39 com orgulho).
Na adolescência, a situação piorou. Meus pelos começaram a crescer mais e eu também não via muito sentido em me depilar. As aulas de educação física na escola eram um inferno,já que eu precisava usar bermuda e as meninas ficavam encarando minhas pernas peludas o tempo todo.
Nessa fase da vida escolar, fiz amizade com as outras pessoas que eram tão excluídas quanto eu: a galera nerd e os roqueiros (eu estudava numa escola católica, então se você era roqueiro, muito provavelmente a maioria das pessoas acreditava que você “tinha pacto com Satanás”). Assim, me encontrar constantemente nesse não-lugar era uma constante na minha vida.
Fui pesquisar e comecei a perceber que sempre fui sapatão, só não fazia ideia porque não encontrei nenhuma representatividade disso
As coisas começaram a melhorar um pouco quando entrei na faculdade. Ali, uma sapatão mais velha virou para mim e disse, com todas as letras: “Você é sapatão”. Primeiro, fiquei chocada por perceber que, para além da minha bolha na adolescência, as pessoas na universidade podiam expressar a sua sexualidade fora da heteronorma.
Depois, fui pesquisar e comecei a perceber que sempre fui sapatão, só não fazia ideia porque não encontrei nenhuma representatividade disso. Não existia Youtube, por exemplo, para assistir a algum canal lésbico ou LGBT e saber que aquelas pessoas existiam. Minha vida teria sido muito mais fácil.
Então, aos 20 anos saí do armário e me assumi lésbica!
A vida fora do armário
Resolvi minhas questões internas e externas, sai do armário como lésbica, mas e agora? Depois de todo esse processo, me deparei com outro: o de me descobrir negra. Pois é, para as pessoas negras de pele clara, às vezes o “se perceber negrxs” pode vir mais tarde. Passei quase a minha vida toda sendo chamada e tratada como “morena” (e as variações desse termo).
Nesse momento, me perceber lésbica, negra e gorda foi dolorido – eu estava fora do radar da maioria das sapatão, principalmente das brancas. Parafraseando uma amiga e ensaísta popular, Dríade Aguiar, “senti que poderia passar o resto da minha vida por não me encaixar em nenhum lugar: para os movimentos negros, eu era lésbica; e para as lésbicas, eu era negra. E agora?
Foi um longo processo de empoderamento – inclusive, ainda estou nele – para entender que muitas das situações que aconteceram comigo eram fruto do racismo, do machismo e da lesbofobia estrutural que atinge diariamente corpos e subjetividades fora da heteronorma branca européia masculina e cisgênera.
Outras formas de existir
Ser sapatão preta é estar sempre em busca de novas narrativas para a sua existência no mundo. É entender que esse padrão colonial de vivência e afeto não nos contempla, nossos corpos maravilhosos não cabem nele, ainda bem.
Seguiremos! Avante, Sapatonas!
– Ana Claudino, criadora do Sapatão Amiga e do LesboSapiência