Eu sou o Danilo, indígena do povo Tupinikim, da comunidade de Caieiras Velha, situado no norte do Espírito Santo. Atualmente, no estado há a presença de povos indígenas aldeados apenas no município de Aracruz, somando-se cerca de 9.160 indígenas das etnias Tupinikim e Guarani, de acordo com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE).

O debate sobre questões de gênero e sexualidade em qualquer contexto social, acredito eu, é bem escasso e , em alguns casos, inexistente. Na comunidade indígena onde nasci, não é diferente. Essa situação sem qualquer representatividade ou figura LGBTQ+ em que eu pudesse me apoiar ou me ajudar contribuiu para que, desde pequeno, meu processo de descoberta fosse um pouco mais difícil e confuso.

Difícil, pois mesmo sem entender sobre sexualidade e o que eu era, estive sujeito ao ódio gratuito. E confusa também, pois sem nenhuma representatividade passei a questionar por que não me encaixava no padrão em que todos os kunumî (meninos) da minha idade estavam. Na comunidade, ainda pequeno, passei por diversas situações constrangedoras que eu não entendia – comentários que, hoje, entendo como homofobia. Acredito que eles são fruto de uma construção social e de um processo etnocida advindo da colonização dos povos indígenas. Afirmo isso porque o etnocídio de muitos povos indígenas resultou no apagamento de muitas práticas, principalmente das sexualidades indígenas.

Passei a sair da aldeia diariamente para estudar e, com a mesma frequência, tive contato com a homofobia

A falta de representatividade dentro da comunidade dificultou meu processo de autoaceitação, pois ter que passar por tudo isso sem ter algum tipo de orientação ou apoio tornou tudo mais doloroso. Na comunidade, eu conhecia duas manas que sempre admirei pela coragem de se assumirem e viverem como querem. Na escola, durante a transição do ensino fundamental ao ensino médio, passei a sair da aldeia diariamente para estudar e, com a mesma frequência, tive contato com a homofobia.

Em março de 2018, assim que passei no vestibular da Universidade de Brasília (UnB), vim estudar Ciência Política na nossa capital federal e me deparei com uma realidade totalmente diferente da que eu vivia. O choque cultural foi o mais impactante pra mim.

Danilo Tupinikim: "Ter contato com referências, no ambiente em que estava,  me ajudou no processo de autoaceitação da minha sexualidade" (Foto: Arquivo Pessoal)
Danilo Tupinikim: “Ter contato com referências, no ambiente em que estava,  me ajudou no processo de autoaceitação da minha sexualidade” (Foto: Arquivo Pessoal)

A entrada na vida universitária foi de grandes descobertas e crescimento pessoal. Encontrei diversas pessoas da comunidade LGBTQ+ e pude conhecer mais sobre a nossa história e cultura. Ter um primeiro contato com essas referências, no ambiente em que eu estava,  me ajudou bastante no processo de autoaceitação da minha sexualidade.

Infelizmente, não foi assim em todos os lugares. Em Brasília, também sofri muito preconceito pela minha sexualidade e ainda por ser indígena. Quando me assumi, passei a sofrer um duplo preconceito: por ser indígena e gay. Mas, com meu processo de empoderamento, fui aprendendo a lidar com as diversas situações às quais eu, enquanto sujeito indígena gay, estou exposto.

Quando saí da comunidade para estudar em Brasília, ainda não tinha me assumido para a minha família. Por mais que eu acredite que nenhum de nós LGBTQ+ deveríamos passar por essa situação, já que nenhum hétero precisa “se assumir” assim, isso acabou acontecendo quando participei de uma matéria do G1 sobre indígenas LGBTs. Aceitei sem ter ideia da proporção de tudo isso traria consigo, positiva e negativamente.

Depois que me assumi, tudo mudou. Senti um alívio depois da conversa [com minha mãe] e nossa relação mudou pra melhor

Após a publicação, minha mãe ficou sabendo da minha orientação sexual por terceiros e me ligou. Foi quando eu afirmei para ela que “sim, eu sou gay”. Me lembro muito bem de quando ela afirmou que estaria comigo em qualquer situação, mas que eu deveria tomar cuidado, pois ela não poderia me proteger do mundo, que é bastante ignorante. Depois desse dia, tudo mudou. Senti até um alívio depois dessa conversa e, hoje, vejo até que nossa relação mudou pra melhor.

Assim que a matéria saiu, passei a falar abertamente sobre minha orientação sexual e a fazer palestras sobre a sexualidade no contexto indígena, a escrever artigos, participar de debates, estudar mais sobre questões de gênero e lutar por direitos LGBTQ+. Em parceria com outros indígenas, levantamos um movimento para debater esses assuntos sob a perspectiva indígena e fundamos o TIBIRA  para continuar com nossa luta. Hoje, nosso movimento tomou uma proporção que torna gratificante receber mensagens de outros indígenas LGBTQs falando/desabafando sobre suas situações e contando suas histórias de autoaceitação e descobertas.

A academia foi um elemento essencial para minhas descobertas pois me abriu vários caminhos, mas em muitas vezes a universidade carece na assistência com seus alunos, por mais que tenha diretorias focadas no assunto. O racismo e a homofobia caminham juntos constantemente e a universidade não está preparada para lidar com esse tipo de situação.

"As instituições não sabem lidar com nossas especificidades e a imagem produzida e reproduzida por pessoas brancas é de um indígena hiper-real que não nos contempla" (Foto: Arquivo pessoal)
“As instituições não sabem lidar com nossas especificidades e a imagem produzida e reproduzida por pessoas brancas é de um indígena hiper-real que não nos contempla” (Foto: Arquivo pessoal)

O racismo institucional e estrutural foram e são muito presentes na minha trajetória acadêmica e na cidade de Brasília, onde resido. As instituições não sabem lidar com nossas especificidades e a imagem produzida e reproduzida por pessoas brancas é de um indígena hiper-real que não nos contempla. Imagem essa que exclui a diversidade de gênero e sexual dos povos indígenas, os colocam como selvagens, que não podem cursar uma faculdade ou ter acesso à cidade.

A Associação dos Acadêmicos Indígenas (AIUnB) e os estudantes indígenas da UnB foram acolhedores e sempre estavam dispostos a ajudar no que fosse preciso, se tornaram fundamentais à minha adaptação em Brasília. Em parceria com a Coordenação da Questão Indígena (COQUEI) da UnB, eles fazem encontros, debates, reuniões e confraternizações com o objetivo de auxiliar os alunos nessa nova realidade.

Por fim, quero afirmar que o escrito aqui na Híbrida diz respeito apenas à minha realidade enquanto um indígena gay. Não procuro generalizar todas as manas, porque cada corpo, infelizmente, é sujeito a diferentes situações e cada povo tem sua especificidade. Nunca será a mesma realidade.

– Danilo Tupinikim, estudante de Ciência Política na Universidade de Brasília


A “Híbridx” é uma coluna fixa do nosso site que serve de plataforma para apresentar as várias nuances e narrativas diferentes da comunidade LGBTQ+, indo além dos estereótipos esperados. É um espaço para conhecer e celebrar múltiplas realidades e interseccionalidades, contadas em primeira pessoa. 
 

O objetivo é abrir os olhos do leitor para a pluralidade de vivências, histórias e possibilidades dentro da comunidade LGBTQ+, mostrando ao mesmo tempo que toda e qualquer singularidade tem espaço e direito para existir.