Híbrida
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Gabriel Ferreira: “Como se inserir no mundo quando além de preto, você também é viado?”

Quando se imagina o universo gay, tirando a visão homofóbica, o que vem à memória são corpos exuberantes, músicas pop, pessoas estilosas e uma felicidade inabalável. Pelo menos é esse painel que você encontra se jogar no Google a palavra “Gay”. O que quase ninguém percebe é que todas as pessoas desse mundo ideal são brancas. O padrão gay é branco.

Para confirmar esse cenário, basta andar pela Farme de Amoedo, em Ipanema, ou em qualquer outra boate bolada dessas: esses territórios pertencem a homens brancos e sarados. Pra mim, esse tipo de ambiente sempre foi hostil. Eu me sentia o verdadeiro “fora do meio”, já que o corpo negro é habitualmente o ser exótico e reduzido a uma porcentagem residual. Não é uma surpresa. O meio LGBT+ também está inserido numa lógica racista onde o belo é representado pela branquitude e a negritude é associada a valores inferiores. No caso, a valorização da identidade negra masculina acontece quando associada à virilidade, à força e ao falo. Como se inserir no mundo quando além de preto, você também é viado?

Demorei muito tempo pra entender a relação entre ser gay e ser negro, além de ser pobre e periférico. Primeiro, entendi a desigualdade racial quando saí de Caxias para viver o mundo universitário, na Faculdade de Direito da UFRJ. Antes, todos os meus vizinhos eram negros, assim como todos os passageiros do Vale do Ipê x Central. Todos os ambulantes eram negros e, naquele momento, tive contato com um lugar onde os alunos e professores da “melhor do Brasil” eram quase todos brancos, oriundos das melhores escolas do Rio, moradores dos bairros com melhor IDH da Cidade Maravilhosa.

Gabriel durante sua formatura em Direito, pela UFRJ: o primeiro da família a ingressar no Ensino Superior (Foto: Reprodução Facebook)

Eu, o primeiro da minha família a ingressar no Ensino Superior, não fazia ideia que existissem pessoas dispostas a pagarem em uma mensalidade escolar o que meu pai recebia de salário. Demorei muito tempo também para entender o que significava estar na mesma sala de aula que elas. O choque final foi na colação de grau, quando entendi por que eu me sentia mais forte quando via um irmão e uma irmã pegar o canudo, numa cerimônia onde as famílias brancas comemoravam a formatura dos seus descendentes seguindo o caminho dos seus avós, bisavós etc.

Reconhecer as desigualdades de classe e de raça me fez querer entender o funcionamento dessa sociedade e lutar contra o sistema. Ingressei no movimento estudantil e isso foi libertador. Rompi de vez com todas as lições que a Igreja tinha me ensinado, pensei o mundo com outra perspectiva, entendi a relação das classes e a possibilidade de viver como um ser humano livre. Nesse contexto, reconhecer-me gay foi confortável no contexto da militância, afinal havia outras pessoas que militavam no movimento e me apoiavam.

Porém, esse conforto sempre era interrompido no momento em que eu vivia o tal mundo LGBT+. Quando percebia que todas as referências de beleza eram de garotos brancos, com roupas legais e corpos esculpidos. Não sei se vocês sabem, mas as pessoas ainda não “gostam” de negros. Na verdade, existe um papel reservado para nós, representado pela indústria pornográfica como “sexo interracial”: o homem negro musculoso que se resume ao tamanho do seu falo. Essa hipersexualização do corpo negro exclui nossas qualidades humanas, nos objetificando em um ser humano em prol do prazer do branco.

 

Essa hipersexualização do corpo negro exclui nossas qualidades humanas

A crueldade de uma sociedade homofóbica tolera apenas aqueles que podem pagar e os que atendem aos padrões corporais e de comportamento, excluindo a maioria dos LGBTs que são negros, pobres, trabalhadores e periféricos. Os protagonistas usuais dos filmes de temática gay até as capas de revista excluem e constroem um padrão no qual não aparece a maioria desse público.

As consequências disso são diversas e atingem a totalidade da vida, desde a vulnerabilidade dessas pessoas – que são expostas a mais situações de violência por exercerem sua sexualidade ao ar livre, onde ainda é de graça – até problemas psicológicos que afetam sua autoestima. Conversando com amigos negros e gays, percebi que existe quase um padrão de vivência: pessoas que enfrentam dificuldades de serem amadas e de manterem relações estáveis, compreendendo que assumir um namoro com um homem negro requer assumir também sua trajetória e sua dor.

Compreender esse sistema me fez concluir que a origem de classe, a orientação sexual e a raça demarcam minha existência. E por mais que eu tenha “cumprido” algumas exigências meritocráticas de ter saído da escola pública de Caxias para me tornar um dos poucos negros na turma de Direito da UFRJ, ainda não é suficiente. Nunca será. Quanto mais avanço, mais percebo o quanto existem privilégios que eu não tive e nem terei.

Gabriel: “Sou fruto de duas realidades distintas” (Foto: Reprodução Facebook)

Sou fruto de duas realidades distintas. Uma delas por ser de Caxias, de família evangélica e negra. Outra é a universitária, como militante de esquerda, inserido em espaços nos quais precisei pegar três ônibus para chegar. É difícil entender que o chão que se pisa é bombardeado por ideologias difundidas por instituições que fazem esse espaço limitado para a sua vivência. E, por outro lado, aqueles que compartilham sua luta social também não fazem ideia de como é sua vida. Um mundo distante do outro. Sinto que sou dois, e quando um assume o controle, o outro sai de cena. É difícil saber até que ponto um não contamina o outro e qual desses é o verdadeiro.

Nos momentos mais difíceis, encontrei força em pessoas que tiveram uma mesma trajetória que eu e que enfrentam batalhas parecidas ou iguais. Ao compartilharmos nossas dificuldades, fortalecemos um sentimento de unidade e resistência. Nessas situações mais complicadas, lembro que essas pessoas existem e que muitos outros já existiram e resistiram. Não sou único, nem melhor ou pior. Sou parte de um povo e uma comunidade que não foi e nem será apagada. Como diz Linn da Quebrada, “ser bicha é também poder resistir”.

Eu costumo sempre pensar no processo histórico para ter esperanças no futuro. Quando vejo o retrocesso que estamos vivendo, penso quantos outros já não foram derrotados pela mobilização popular ou quantas instituições reacionárias não foram derrubadas. Na batalha cotidiana de sobreviver, gosto de pensar quantas outras pessoas resistiram e quantas ainda resistem. Gosto de pensar que essa herança histórica corre nas minhas veias e hoje eu sou parte disso.

Essa herança histórica corre nas minhas veias e hoje eu sou parte disso

Muita coisa tem mudado: a resistência negra tem crescido e se afirmado nos espaços. Há uns seis anos, não era tão comum os blacks, os coletivos de negras e de negros nas universidades ou nas escolas. Hoje, existem debates protagonizados por LGBTs negras que enfrentam o padrão branco e heteronormativo na sociedade. A força social desse processo pode transformar nossa sociedade. Isso pode parecer otimista, mas a esperança sempre foi nosso combustível para resistir.

– Gabriel Ferreira


A “Híbridx” é uma coluna fixa do nosso site que serve de plataforma para apresentar as várias nuances e narrativas diferentes da comunidade LGBT+, indo além dos estereótipos esperados. É um espaço para conhecer e celebrar realidades que podem ser completamente diferentes das nossas, mas não são menos válidas por isso. 
 

O objetivo é abrir os olhos do leitor para a pluralidade de cores no arco-íris da nossa bandeira, mostrando que não importa qual seja o gênero, raça, religião, origem ou saldo bancário de alguém, essa pessoa tem o direito de ser do jeitinho que ela quiser: uma mistura única e individual, Híbridx.

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