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Ollivia Leo: “Passei a me identificar como pessoa não-binária, nem homem nem mulher”

OLLIVIA LEO por Gabriel da Silva Melo

Rosa de menina, azul de menino. Boneca de menina, carrinho de menino. Para mim essas afirmações sempre pareceram esdrúxulas, aleatórias, sem sentido algum. Elas me intrigavam, e eu ficava me perguntando qual critério determinava e separava as coisas assim. Seria tudo um processo aleatório, como os números de um bingo?

Desde a infância, eu sentia que era muito difícil seguir as regras de comportamento que me eram ensinadas. Por que não posso cruzar as pernas assim? Por que não posso fazer xixi sentado? Por que não posso usar vestido? Por que não posso pintar as unhas? São tantas as formas de coerção, que eu poderia escrever um livro sobre a infância que eu não vivi por conta dessas limitações.

Finalmente, aos 26 anos saí da casa dos meus pais e pude parar pra prestar atenção em mim. Ouvir os desejos mais profundos da minha alma e dialogar francamente comigo sobre qual a estética que eu gostaria de assumir. Por sinal, esse papo de estética pode parecer fútil e superficial, mas não é. A forma como nos apresentamos ao mundo é carregada de significados e tem uma potência política enorme. E essa potência reverbera não só nos outros, mas também em nós mesmos, no nosso subjetivo. Amar e se sentir confortável com o que você vê no espelho é revolucionário e muda a forma como encaramos a vida.

“Amar e se sentir confortável com o que você vê no espelho é revolucionário e muda a forma como encaramos a vida” (Foto: Arquivo pessoal)

Depois de pensar bastante sobre todas as minhas possibilidades, passei a me identificar como uma pessoa não-binária. Ou seja, alguém que não se enxerga com nenhum dos dois gêneros hegemênicos – nem homem e nem mulher. Essa escolha, que para outras pessoas pode ser muito confortável, é algo que por si só me acarreta alguns problemas. Hoje, eu vejo que muita gente acha difícil lidar com alguém que elas não conseguem enquadrar em papeis de gênero já conhecidos ou pré-estabelecidos.

As tarefas corriqueiras se tornam um desafio quando não estamos de acordo com os papeis de gênero. Pegar ônibus, por exemplo: me encaram sem o menor pudor, e por vezes me sinto nu enquanto me observam. A ansiedade e o desconforto só passam quando acho um lugar para sentar, de preferência no fundo.

As tarefas corriqueiras se tornam um desafio quando não estamos de acordo com os papeis de gênero

Apaixonar-se por alguém é outra questão. Parece que a cisnormatividade detém a patente dos corpos que são passíveis de amor e de afeto. A visão estereotipada de que pessoas transfemininas são necessariamente putas, aliada à putafobia que já permeia a sociedade, acaba nos colocando quase imediatamente no escanteio de qualquer chance à afetividade. Algumas pessoas de mente mais aberta até se interessam por nós, mas ainda assim não se permitem construir algo mais profundo, simplesmente porque nossos corpos ininteligíveis não cabem dentro das suas construções mentais sobre relacionamento.

Não saímos bem na foto e não cabemos nos seus porta-retratos. Nos destinam amores falsificados por nos lerem como pessoas falsificadas. Nos oferecem migalhas afetivas, e na maioria das vezes de forma escondida, na calada da noite, pelos becos e vielas. Eu costumo perguntar exaustivamente a todos ao meu redor: Quem ama uma travesti? Quem anda de mãos dadas com uma? Quem apresenta travesti como namorada aos amigos e à família?

São perguntas incômodas e muito simples de serem respondidas. A resposta para todas elas é: quase ninguém. Ao mesmo tempo, são perguntas de poder, que fazem as pessoas perceberem o quanto elas nos desumanizam.

Em outra ponta desse problema, estão os clichês que os meios de comunicação difundem sobre pessoas trans, fixando essas imagens no imaginário coletivo. Meu esforço diário é informar os outros que transgeneridade NÃO É necessariamente um desconforto com o próprio corpo. NÃO É ter nascido na pele errada. NÃO É sobre fazer cirurgias ou tomar hormônios. Essas possibilidades são todas legitimas sim, mas não são as únicas.

Ollivia Leo Arrighi: “Transgeneridade não é necessariamente um desconforto com o próprio corpo” (Foto: Reprodução)

O senso comum costuma acreditar que a experiência da transgeneridade é sempre marcada pelo repúdio ao próprio corpo (ou a partes dele), mas isso não é verdade. Como sempre, esse preconceito acaba refletindo de forma negativa na nossa subjetividade. Muites de nós nos sentíamos bem, mas acabamos desenvolvendo disforias para nos encaixarmos e sermos respeitades enquanto pessoa trans. O olhar colonizador cisgênero sobre nós acaba por influenciar negativamente a própria maneira como nos vemos e como vivemos a experiência de ser trans.

Eu sou uma pessoa trans que ama o próprio corpo, que não toma hormônios e que não pretende fazer cirurgias. Eu sou uma pessoa trans que não usa a régua da cisgeneridade para medir a minha transgeneridade. E deixo claro que nada dessas coisas são fixas e imutáveis: a qualquer momento, posso mudar de ideia sobre cirurgias ou sobre hormonização, porque me permito a dúvida. Permito-me estar em permanente construção e não ter certeza alguma sobre quem eu sou ou sobre quem eu quero me tornar. Me dei de presente a vulnerabilidade e ganhei junto a liberdade.

Eu os convido a refletir sobre gênero não como dois lados de uma moeda, ou como rosa e azul. Mas sim como um espectro, umas escala infinita de tons e possibilidades de ser. Essa mudança de percepção é imprescindível para que paremos de ver a transgeneridade como um caso patológico. Não existem maneiras corretas de ser e de estar. Eliminar as certezas sobre si e sobre os outros baseando-se na biologia vai ser libertador pra todos: tanto para nós, pessoas trans, quanto para as pessoas cis.

– Ollivia Leo Arrighi


A “Híbridx” é uma coluna semanal que serve de plataforma para apresentar as várias nuances e narrativas diferentes da comunidade LGBT+, além dos estereótipos esperados. É um espaço para conhecer e celebrar realidades que podem ser completamente diferentes das nossas, mas não são menos válidas por isso. 
 

O objetivo é abrir os olhos de quem está lendo para a pluralidade de cores no arco-íris da nossa bandeira, mostrando que não importa qual seja o gênero, raça, religião, origem ou conta bancária de alguém, essa pessoa tem o direito de ser do jeitinho que ela quiser: uma mistura única e individual, Híbridx.

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