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HISTÓRIA QUEER

David Kato, o professor que liderou a luta por direitos LGBTQia+ em Uganda

David Kato ficou conhecido como o primeiro homem abertamente gay de Uganda (Foto: divulgação)

*Texto adaptado do original de Laura Darling

David Kato é considerado o primeiro homem abertamente homossexual da Uganda e pai do movimento LGBTQ no país. Ele foi uma figura conhecida no cenário político internacional, mesmo sendo incrivelmente perigoso ter seu nome reconhecido como gay no próprio país, onde relações homoafetivas são proibidas por lei. No caso de David, esse perigo se tornou ainda maior porque os cidadãos ugandenses costumam aplicar essas leis contra homossexualidade de forma cruel e autônoma, o que culminou no seu assassinato brutal em 2011.

De uma perspectiva histórica, é bem improvável que David Kato tenha sido o primeiro homem abertamente gay na Uganda. Mas ele certamente foi o que teve mais notoriedade no país durante o século XXI. E essa foi uma decisão consciente. Kato teve a oportunidade de se mudar para a África do Sul, onde contaria com leis e proteções melhores aos seus direitos como LGBT, mas ele fincou pé na Uganda e, ao longo de toda sua carreira, sempre disse não ter planos de abandonar sua terra-natal.

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Ele também teve a oportunidade de permanecer no armário. Como um professor bem conceituado, as pessoas desejam suas habilidades profissionais, mas também desejavam que ele não fosse gay. E se ele quiser esconder sua sexualidade em qualquer momento, ele poderia ter permanecido no escuro e se tornado um modelo exemplar de como um homossexual deveria se portar na Uganda.

David Kato passou a vida documentando infrações de direitos humanos na Uganda, chegando a abrigar mulheres lésbicas vítimas de "estupro corretivo" (Foto: "Call Me Kuchu" | Reprodução)
David Kato passou a vida documentando infrações de direitos humanos na Uganda, chegando a abrigar mulheres lésbicas vítimas de “estupro corretivo” (Foto: “Call Me Kuchu” | Reprodução)

Mas David preferiu não viver essa vida. Ele tratou sua sexualidade da forma mais pública possível, se assumindo como homem gay durante uma coletiva de imprensa que resultou em sua prisão. Seu posicionamento, tanto em Uganda quanto na mídia, era extremamente calculado.

Ao longo de sua vida, Kato foi um ativista feroz pela comunidade LGBTQ. Em novembro de 2009, ele discursou na perante a Comissão de Direitos Humanos da Uganda, formada pela nata da liderança homofóbica, para promover os direitos de sua comunidade. Em um documento que deveria ser secreto, mas foi posteriormente disponibilizado pelo WikiLeaks, é possível ter uma noção da coragem e bravura que o professor demonstrou nesse episódio.

O discurso de David Kato perante os líderes da homofobia na Uganda

O evento foi organizado para debater uma lei submetida ao Congresso da Uganda, cujo objetivo era criminalizar “a prática e o recrutamento homossexual”. A princípio, membros das Organizações das Nações Unidas (ONU) não haviam encontrado nenhum representante da comunidade LGBTQ disposto a se pronunciar no evento, uma vez que ele estaria repleto de autoridades ugandesas.

Por lá, estava presente David Bahati, político ugandense membro do Parlamento e do partido do Governo, autor da lei a ser debatida, que determinava pena de morte a adultos que “praticassem o ato homossexual”. Também participavam da reunião James Nsaba Buturo, ministro de Ética e Integridade, e o Pastor Martin Ssempa, uma das principais lideranças anti-LGBT e fundador da Igreja da Comunidade Makerere.

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Foi então que um embaixador norte-americano recebeu a dica de um membro da plateia para que David Kato fosse convidado ao palco para ser a única pessoa com coragem de se opor publicamente à lei.No documento obtido pelo WikiLeaks, a fala de David foi caracterizada como um “discurso bem escrito, mas quase inaudível devido ao seu evidente nervosismo”. Enquanto falava, o ativista foi constantemente interrompido pelos líderes da Uganda, que faziam piadas homofóbicas aos gritos e sob os aplausos do público presente.

“A comunidade LGBT nos oferece solidariedade, pertencimento. Quando nos assumimos, sofremos sozinhos por anos. Mas no minuto em que você percebe ‘Ah, esse aqui é como eu’, então somos irmãos; então somos amigos; e então somos parceiros na luta”

Ainda assim, ele denunciou a homofobia “cega e incurável” das pessoas ali, as mesmas que chegaram carregando um documento com o título “Os 10 Pecados Mortais da Homossexualidade”, desenvolvido em parceria com membros da Igreja Anglicana. Minutos antes, os defensores da lei debatida haviam declarado que homossexualidade “não era uma mudança, mas um mal a ser combatido”.

David terminou seu discurso e saiu às pressas da reunião, que entrou para um intervalo. Logo em seguida, Ssampa voltou ao palco com imagens explícitas do que descreveu como “sexo gay”. Inflamado e ultrajado, o público presente perguntou aos gritos, enquanto batia nas mesas, “por que ninguém havia prendido os homossexuais da Uganda quando tiveram a chance”.

Jornal da Uganda pede publicamente o enforcamento de David

Discursos não resumem a extensão do ativismo de Kato para a comunidade LGBTQ. Além de sua posição como fundador da Sexual Minorities Uganda (SMUG) [“Minorias Sexuais da Uganda”, em tradução livre], ele também trabalhava diretamente com o registro e documentação das violações de direitos humanos. De forma mais pessoal, ele ficou conhecido por abrigar em sua casa mulheres lésbicas que foram submetidas ao “estupro corretivo”.

David foi um filantropo em vida e, mesmo não tendo muito, dividia tudo o que tinha. Dentre os sacrifícios que fez, está o ódio e escrutínio público ao qual ele se submeteu, enquanto fazia uma campanha para melhorar os direitos da comunidade LGBTQ em Uganda. E parte desse escárnio veio na capa do jornal Rolling Stone (sem qualquer relação com a revista norte-americana de mesmo nome).

Jornal “Rolling Stone” publicou lista dos “100 principais homossexuais da Uganda” sob manchete que pedia pelo enforcamento dos mesmos (Foto: Reprodução)

Em 2 de outubro de 2010, o folhetim publicou uma capa com a machete “100 fotos dos principais homossexuais da Uganda”. As fotos de David e outro homem estampavam a edição, com a chamada “Enforque-os” e, no interior, o endereço do ativista, além de falsas alegações que homens gays estariam “recrutando 100.000 crianças inocentes” e “pais estão de coração partido enquanto bichas dominam escolas”.

Fundado há menos de um ano, o jornal foi processado pelo ativista, que conseguiu na Justiça uma ordem que impedia o veículo de divulgar qualquer dado que identificasse supostos homossexuais em suas páginas. Menos de três meses depois da vitória judicial, em 26 de janeiro de 2011, David Kato foi assassinado com dois golpes de martelo na cabeça, horas depois de ter falado com um amigo da SMUG sobre o aumento de ameaças contra ele nas últimas semanas.

A polícia tentou culpar o crime no aumento da violência naquela região. Mais tarde, o jardineiro Sidney Enoch foi condenado pelo crime e as autoridades locais explicaram que a motivação “não foi um roubo e nem porque Kato era ativista. Foi um desentendimento pessoal, mas não podemos dizer mais que isso”. Em cartas entregues à Humans Rights Watch e ao Parlamento Europeu, amigos de David e embaixadores explicaram que o assassinato ocorreu porque o ativista se recusou a pagar Enoch para manter relações sexuais com ele.

Funeral de David Kato foi marcado por homofobia de padre da Igreja Anglicana e por resistência de ativistas da Uganda (Foto: Getty)

Mesmo o funeral de David foi marcado pela homofobia gritante da Uganda e sua luta contra esse regime. O padre que oficializava a cerimônia fez um discurso inflamado no qual condenou gays e lésbicas, evocando a versão bíblica de Sodoma e Gomorra. Os amigos do ativista então tiraram o microfone de suas mãos e o retiraram do local. Mais tarde, eles carregaram sozinhos o caixão para outro lugar, onde um outro padre excomungado pela Igreja Anglicana terminou o serviço.

O assassinato de David foi condenado por figuras como Barack Obama e a então secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton, além de ter motivado posicionamentos oficiais de inúmeros órgãos em defesa dos direitos humanos e LGBTQ. Hoje, quase 10 anos depois, pouco parece ter mudado na legislação e no respeito da Uganda à diversidade.


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