Híbrida
HISTÓRIA QUEER

Cristina da Suécia, a Rainha que desafiou os papeis de gênero no século XVII

*Texto original de Laura Mills

Na “História Queer” dessa semana, analisaremos os muitos e diferentes rótulos queer que poderiam ser atribuídos a Cristina, Rainha da Suécia. E, como não temos a própria para se explicar, faremos o melhor com as informações que temos. Esta é apenas a nossa opinião; se você discorda, e tem uma boa razão para isso, por favor deixe nos comentários. A única coisa que sabemos com certeza a respeito de Cristina é que ela certamente não era heterosseuxal, cisgênera ou diádica*.

É importante primeiro tomar nota que nós não somos os primeiros a ter dificuldade em definir o gênero de Cristina. Na verdade, ele tem fascinado as pessoas desde o dia em que ela nasceu, em dezembro de 1626, em Estocolmo, na Suécia. Quando as enfermeiras inicialmente a viram, ela foi declarada como garoto. O erro demorou um dia para ser corrigido, por conta do medo que elas tinham do pai de Cristina, que torcia por um herdeiro homem há anos e era conhecido pelo seu péssimo temperamento.

Mas ele surpreendeu a maior parte do país ao receber a notícia muito bem, decidindo que ela seria sua herdeira independentemente dos cromossomos com os quais havia nascido, e que ele não iria tratá-la de forma diferente da que trataria um príncipe. Existiram muitas teorias do porquê de esse erro ter acontecido. Uma delas é a de que Cristina tinha muitos pelos; outra, mais prováveel, é a de que ela talvez tenha sido intersexual*. Um exame de seus ossos não foi conclusivo para provar se isso era verdade ou não, mas continua sendo uma possibilidade real, em uma longa linha de teorias sobre a identidade de Cristina.

Retrato de Rainha Cristina aos 14 anos, pintado por Jacob Heinrich Elbfas (Foto: Reprodução)
Retrato de Rainha Cristina aos 14 anos, pintado por Jacob Heinrich Elbfas (Foto: Reprodução)

Independentemente de sua genitália, Cristina não é contemplada facilmente pelos rótulos de homem ou mulher, rompendo papéis sociais de gênero de ambos os lados desde muito jovem e mantendo tal tradição até o dia em que morreu. Ela foi criada como um príncipe, com a melhor tutoria e treinamento nas artes da luta e da guerra. Seguindo os desejos de seu pai, foi coroada Rainha da Suécia quando atingiu maturidade para tal, mas foi uma rainha como ninguém jamais havia visto antes.

As pessoas pediam que ela agisse mais como seu pai (como um homem), e que continuasse a Guerra dos Trinta Anos contra os católicos. Entretanto, ela se recusou, pedindo paz e a atingindo com sucesso em seu curto tempo como soberana da Suécia. Logo, como ela não se encontrava na categoria bélica, as pessoas esperavam que ela caísse no outro lado do espectro executivo, sentando e deixando seus conselheiros – e, eventualmente, seu marido -, tomarem controle dos assuntos estatais. Mas Cristina rejeitou firmemente essa expectativa.

Durante seu reinado, Cristina tirou a Suécia de um tempo de guerra e conflito para trabalhar na educação, estabelecendo o primeiro decreto escolar nacional e começando o primeiro jornal, em 1645. Em sua vida pessoal, ela era conhecida por se vestir “como homem”, recusando-se a casar com seu primo, Carlos X Gustavo, e produzir o herdeiro que o país esperava dela. Para evitar tal destino, ela transformou Gustav em seu príncipe e herdeiro.

Retrato de Cristina da Suécia, pintado em 1653 por Sébastien Bourdon (Foto: Reprodução)

Mesmo com as coisas boas que trouxe ao país e sua habilidade em reinar, Cristina abdicou do trono em favor do seu primo depois de apenas 10 anos como rainha. Tirando a repulsa evidente em relação ao casamento e à gravidez, é possível que houvessem outras razões para a sua rejeição a conexões românticas com homens, e é aqui que a história se complica.

É bastante conhecido que Cristina dormia com uma de suas aias e amigas, Ebba Sparre, chamando-a de “minha companheira de cama” em conversas, sem o menor esforço para esconder isso. Quando Ebba abandonou seu palácio para casar-se com um noivo escolhido pela própria Cristina, as duas continuaram mantendo contato através de cartas, com declarações descritas por historiadores como “muito além do amor platônico”.

Mas depois que esse relacionamento acabou, parece que seu interesse em buscar por outros parceiros também acabou completamente. A falta de qualquer relacionamento sexual ou romântico pode se dar por diferentes razões. Pode ser que ela estivesse de coração partido, ou que ela se encontrasse em algum ponto do espectro assexual.

Retrato de Ebba Sparre, Condessa de Bourbon, pintado por Cora Cora Wandel (Foto: Reprodução)

Seu interesse pela visão católica sobre celibato e seu fascínio pela biografia da rainha virgem Isabel I, da Inglaterra, apoiariam essa hipótese, assim como o momento em que ela compartilhou sua decisão de abdicar do trono, dizendo para seus conselheiros: “Eu não pretendo dar razões a vocês, simplesmente não fui feita para casar”, indicando que havia mais nessa afirmação do que a simples falta de candidatos viáveis. Qualquer que seja a razão, ela afirma em suas memórias que Ebba foi o grande amor da sua vida. E, mesmo após esse relacionamento ter acabado e a Rainha ter deixado a Suécia, ela tentou retornar para sua querida Ebba, somente para ser impedida pela família Sparre.

Cristina morreu solteira e amplamente vista como virgem, apesar de qualquer relacionamento sexual que ela possa ter tido com mulheres não ter sido levado em consideração. Quanto ao seu gênero, ela nunca permaneceu em uma identidade, usando tanto o título de rei como de rainha, levando a pensar que se ela tivesse os rótulos que temos hoje, há uma real possibilidade de que ela se identificaria como não-binárie*.

“Eu nasci, vivi e morrerei livre”

– Cristina, Rainha da Suécia

Mas sem ela para escolher, não existe nenhuma forma de afirmar isso seguramente. Considerando que ela usava roupas tradicionalmente masculinas, o seu bem documentado ódio pela feminilidade e os vários momentos em que ela se esforçou para “passar” como homem, é mais do que provável que Cristina talvez se identificasse como homem trans. O uso do pronome “ela” neste artigo se deu somente porque essa é a única informação concreta que temos, e não uma tentativa de desrespeitá-la ou descreditar qualquer identidade que ela tenha escolhido para si mesma.

Neste artigo, propomos a ideia de que ela era uma pessoa trans demissexual, que se sentia atraída por mulheres, mas quaisquer teorias alternativas são mais do que bem-vindas. Uma parte importante da discussão sobre Cristina é reconhecer que teorizar a identidade dela é permissível por um número de razões.

Primeiro, porque ela já faleceu e nós não estamos arrancando-a do armário, colocando-a em qualquer tipo de perigo ou forçando um rótulo que ela poderia escolher para si mesma. Somado a isso, não é danoso ao seu legado sugerir que ela tenha sido transgênere ou que estivesse no espectro assexual, ou que ela se sentisse atraída por mulheres, porque estas coisas não são intrinsecamente ruins.

Por fim, independentemente de como ela teria se identificado dentro do espectro de gênero e sexualidade que existe hoje, Cristina foi uma pessoa notável e merece ter sua história contada sem que escondamos partes dela, como muitos historiadores o fazem. Ela esteve num relacionamento romântico e sexual com uma mulher, ela se vestia e foi criada como um homem, ela cresceu escolhendo pedaços de muitas identidades e nada disso é vergonhoso.


*Diádico: Uma pessoa que nasceu com sistema reprodutor, anatomia sexual, cromossomos ou hormônios que se encaixam na definição usual de masculino OU feminino. Oposto de intersexo.
*Intersexo: Uma pessoa que nasceu com um sistema reprodutor, uma anatomia sexual, cromossomos ou hormônios que não se encaixam na definição usual de masculino ou feminino.
*Não-binárie: Alguém que não se identifica apenas com gêneros binários, ou seja, “homem” e/ou “mulher”.


Este texto faz parte do projeto Making Queer History cuja existência só é possível graças a doações. Se tiver interesse, você pode fazer uma doação única no Paypal ou tornar-se um Patrono.  

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