Híbrida
HISTÓRIA QUEER

James Baldwin, o escritor preto e gay que marcou a literatura do século XX

James Baldwin, o autor e ativista que transcendeu as barreiras do tempo (Foto: Getty Images)

Em fevereiro deste ano, o Google homenageou o autor e ativista James Baldwin em celebração ao Mês da História Negra nos Estados Unidos. Disponibilizado na página inicial do buscador, o doodle ajudou a impulsionar a curiosidade pelo legado do ensaísta que, ao longo de sua carreira, produziu importantes obras de ficção e não-ficção sobre temas relacionados à identidade e orientação sexual.

No História Queer de hoje, falaremos mais sobre a trajetória de Baldwin, uma das principais vozes da literatura dos EUA no século XX e alguém cujo impacto e influência são sentidos até os dias atuais nos mais diferentes campos das artes.

James Arthur Baldwin nasceu em 2 de agosto de 1924, no miscigenado bairro de Harlem, Nova York. Filho mais velho de Emma Berdis Jones, ele jamais chegou a conhecer o pai biológico, crescendo sob a tutela do pastor evangélico David Baldwin. Três anos após seu nascimento, mãe e padrasto se casaram, o que fez o pequeno James tomar para si o sobrenome do reverendo.

A relação entre os dois sempre foi tumultuosa. De acordo com um dos biógrafos do autor, “eles brigavam porque James lia livros, gostava de filmes e porque tinha amigos brancos” – coisas que, segundo as crenças de David, amaldiçoavam a “salvação” do enteado. 

A fervorosa devoção do novo pai, além de desavenças ideológicas, também levou James a pregar numa pequena igreja pentecostal, dos 14 aos 17 anos.

O jovem James Baldwin. Autor e ativista cresceu no bairro Harlem, de NY (Foto: Acervo)
O jovem James Baldwin. Autor e ativista cresceu no bairro Harlem, de NY (Foto: Acervo pessoal)

A rotina seguia atribulada e as dificuldades enfrentadas pela família, que era bastante pobre, persistiram, mas o jovem James não abandonou a escola. Inclusive, o aprendizado e contato com outras pessoas de realidades diferentes da sua foram de grande importância para a percepção que mais tarde ele desenvolveria do mundo ao seu redor. 

Um dos grandes exemplos disso foi a duradoura amizade que manteve com Orilla Winfield (a quem se referia como Bill Miller). Professora, jovem e branca, ela levou o pequeno Baldwin para assistir à peça Voodoo Macbeth, adaptação dirigida por Orson Welles da obra de William Shakespeare, encenada por um elenco inteiramente negro. A montagem fez nascer no garoto o desejo de, algum dia, escrever um enredo para os teatros – um sonho que ele transformaria em realidade em sua vida adulta.

O vínculo entre James e Bill teve impactos que ultrapassaram o interesse cultural do rapaz: mais tarde, revelou ter sido ela a responsável por impedir que, como o padrasto, ele nutrisse um ódio pelas pessoas brancas.

“Bill Miller não era nada como os policiais que me bateram, ela não era como os senhorios que me chamavam de crioulo*, ela não era como as atendentes de loja que riam de mim. […] A partir da senhorita Miller eu comecei a suspeitar que pessoas brancas não agiam de determinada maneira porque elas eram brancas, mas por uma outra razão, e comecei a tentar buscar e entender essa razão”, escreveu Baldwin no ensaio The Devil Finds Work, em 1976.

“Bill”, seu marido e Baldwin (Foto: Lynn O. Scott/Acervo pessoal)

James Baldwin e a homossexualidade na literatura americana 

Aos 24, insatisfeito com a discriminação racial que imperava nos EUA e buscando explorar melhor sua orientação sexual, Baldwin partiu para Paris. Lá, começou a publicar alguns de seus trabalhos e a conviver, mesmo que brevemente, com pessoas influentes, como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Max Ernst e Truman Capote. Foi também durante essa época que viveu seu primeiro relacionamento homoafetivo com o pintor suíço Lucien Happersberger.

Em 1953, cinco anos após a ida para a França, lançou o primeiro livro: Se o Disseres na Montanha. Em produção desde seus 17 anos, a obra, de cunho semi-autobiográfico, apareceu mais tarde numa lista dos 100 melhores romances de língua inglesa do século XX organizada pela revista Time.

Três anos depois, Baldwin publicou seu segundo romance, considerado um dos maiores clássicos da história da literatura LGBTQIA+: O Quarto de Giovanni. Controverso, o livro chocou a sociedade por retratar o amor entre dois homens – algo até então raro para a cultura dos Anos Dourados.

Durante a estadia inicial em Paris, Baldwin também publicou o livro de ensaios Notas de um Filho Nativo, em 1955, e escreveu a peça The Amen Corner.

Lucien Happersberger e James Baldwin (Foto: Acervo pessoal)

No verão de 1957, decidiu retornar ao país de origem por uma causa especial: a batalha contra a segregação racial. Nos EUA, compôs a linha de frente dos protestos, ao lado das poderosas vozes de Martin Luther King Jr, Medgar Evers e Malcolm X.

Em 1965, participou de um debate contra o conservador William F. Buckley na Cambridge Union, Reino Unido, onde expôs a falácia do “sonho americano”. O discurso não somente convenceu os jovens que estavam na plateia servindo de termômetro para o evento, como ficou eternizado na história pela retórica excepcional do locutor.

Num curto período de tempo, viu, pouco a pouco, os três grandes líderes do Movimento dos Direitos Civis serem assassinados. Devastado, voltou de vez a Paris e, em 1972, detalhou a experiência com os ativistas e também amigos no livro No Name in the Street.

Se a década de 1960 foi marcada pela luta antirracista, foi nos anos 1970 e 1980 que a orientação sexual ganhou destaque nos trabalhos de Baldwin, mesmo que o aspecto racial jamais tenha abandonado sua escrita. Datam desta época a publicação dos livros Just Above My Head, The Evidence of Things Not Seen e Se a Rua Beale Falasse – este último transformado numa adaptação cinematográfica dirigida por Barry Jenkins (o mesmo de Moonlight – Sob a Luz do Luar), em 2018.

Apesar de fazer parte da literatura queer e de ter tido relações com homens e mulheres, ele nunca chegou a escolher um rótulo para se definir. Nem com relação a orientação sexual, nem sobre seu papel na luta antirracista. Talvez seja justamente por romper barreiras através da interseccionalidade que Baldwin se tornou um dos pensadores mais marcantes e revolucionários da comunidade LGBTQIA+, mostrando-se à frente do seu tempo por diversas vezes. 

Para o romancista Eddie Glaude Jr., autor do best- seller Begin Again: James Baldwin’s America and Its Urgent Lessons For Our Own, o segredo da longevidade intelectual do ensaísta foi a honestidade, marca indelével de seu trabalho: “Ele sempre insistiu em sermos honestos conosco mesmos. E essa honestidade abriria espaço para nos imaginarmos de outra forma. James Baldwin preparou o terreno para estarmos juntos de uma forma diferente e mais justa”.

James Baldwin morreu vítima de um câncer estomacal aos 63 anos, em sua casa na aldeia de Saint-Paul-de-Vence, na França. À época, trabalhava no manuscrito Remember This House, que mais tarde serviu de base para o documentário Eu Não Sou Seu Negro, de 2016.

Quase 40 anos após sua morte, o legado de James Baldwin segue ressonante: está presente no cinema, com os filmes citados acima; na literatura, através de autoras como Maya Angelou e Toni Morrison; e na política, com o surgimento de movimentos como o Black Lives Matter.

“Eu acho que a pessoa que articulou o que é ser americano e o que é ser preto, provavelmente com mais eloquência que qualquer um no último século, foi o Baldwin”, declarou o romancista Caryl Phillips há sete anos, em entrevista ao The Guardian.

A reflexão de Phillips foi verdade em 2017, é verdade em 2024 e, ao que tudo indica, continuará sendo verdade no futuro.

*nigger, no original – expressão pejorativa e racista no vocabulário anglófono.

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