Híbrida
HISTÓRIA QUEER

Primeiro autor trans publicado no Brasil, Herzer teve uma vida curta e cruel

Ana Beatriz Nogueira em "Vera", filme que lhe rendeu o Urso de Ouro no Festival de Berlim e é inspirado na vida de Anderson Herzer (Foto: Reprodução)

*Alerta de gatilho: suicídio

Na História Queer de hoje, vamos falar da vida de Anderson “Bigode” Herzer e as implicações que seu legado deixou nas vidas de jovens LGBTs. Jovem e relativamente desconhecido, ele foi um poeta transexual brasileiro, mas que nunca alcançou o nível de fama que merecia. Apesar de não ter tido uma vida longa, ainda assim ele teve uma vida notável e vamos explorá-la da melhor forma possível.

Anderson não teve um bom começo de vida. Seu pai foi baleado num bar quando ele tinha apenas quatro anos e sua mãe não podia sustentá-lo sozinha. Assim, Anderson viveu com seus avós antes de se mudar para a casa de seu tio, onde começou a beber desde cedo. Aos treze, seu primeiro namorado morreu num acidente de motocicleta e o jovem começou a ter problemas na escola.

Ainda vivendo socialmente como mulher, ele começou a se identificar como lésbica. Logo depois, foi parar na Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (Febem), uma instituição socioeducativa para jovens delinquentes, apesar de não ter cometido nenhum crime.

Hoje conhecida como Fundação CASA – Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente, a Febem foi um sistema de detenção superlotado e conhecido pelas suas práticas desumanas. Não entraremos em detalhes quanto às condições e aos tratamentos dentro de seus complexos. Entretanto, é importante destacar que a instituição era frequentemente comparada aos campos de concentração da Alemanha Nazista. Seus funcionários normalmente eram abusivos e, quando não o eram, permitiam que o abuso acontecesse sob sua supervisão.

Anderson, ainda uma criança começando a explorar sua identidade, foi levado para um dos complexos da Febem. Lá, ele se descobriu como homem trans e adotou seu novo nome, o mesmo que usou a partir dali para assinar seus poemas. Ele, como muitos na comunidade, escrevia poesia sobre suas experiências, refletindo e discursando sobre seu gênero, seu encarceramento e as dificuldades com as quais teve que lidar.

Pai, quando você morrer,
eu não vou à missa
pra compensar os pecados que eu
paguei mesmo inocente

– Anderson Herzer, ‘O… poema a um pai adotivo’

Pouco antes de sair da Febem, aos 17 anos, ele começou a publicar sua poesia e encontrou uma comunidade relativamente acolhedora esperando por ele. Seus versos alcançaram muitas pessoas, como Lia Junqueira, que na época era presidente do Movimento de Defesa do Menor. Foi por meio dela que Anderson conheceu Eduardo Suplicy, então deputado estadual em seu primeiro mandato pelo MDB, que se solidarizou com sua história.

Suplicy soube do caso de uma jovem de 17 anos que estava presa na Febem há três anos sem ter cometido qualquer delito, e se responsabilizou por sua soltura. O pai de Anderson tinha sido assassinado quando ele era criança, a mãe precisou se prostituir e faleceu em seguida de uma doença venérea e a avó a quem ela tinha sido entregue também morreu antes que a garota, então reconhecida como Sandra, chegasse aos 14. Entregue aos cuidados de uma tia, ela foi enviada para a Febem após ter batido em seu tio quando este tentou estuprá-la, e lá ficou até o deputado tirá-la.

Ainda na Febem, Sandra assumiu sua identidade como Anderson e, de acordo com relatos do próprio Suplicy, ganhou o apelido de “Bigode” por ter uma tatuagem com esse nome no braço, uma homenagem ao único namorado homem que teve até então. Após tirá-lo da instituição, o deputado o contratou como estagiário e incentivou o talento do rapaz para a escrita.

Eram poemas belos, mas um deles terminava de modo a sugerir que ela queria morrer

– Eduardo Suplicy

Em uma entrevista de 2015, Suplicy relembra o talento de Anderson para a escrita: “Eram poemas belos, mas um deles terminava de modo a sugerir que ela queria morrer. Eu disse: não faça isso, o seu livro vai sair, muita coisa ainda vai acontecer para você”. A despeito dos seus esforços, o poeta cometeu suicídio em 10 de agosto de 1982, quando se jogou de um viaduto da avenida 23 de maio, em São Paulo, aos 20 anos.

Com a expectativa de vida das pessoas trans no Brasil beirando os 35 anos, de acordo com dados da Antra, nós enquanto comunidade temos que contemplar as razões por trás disso. Obviamente, uma delas é a criminalidade – pessoas trans não estão somente em uma posição socialmente vulnerável, mas também são vítimas recorrentes de crimes violentos com requintes de crueldade.

E embora esse seja um assunto que precise ser explorado muito a fundo, iremos discutir a morte de Anderson: suicídio.

Pois quem me dera que ao invés de
adotivo, viciado, marginal e
revoltado,
eu fosse só, tão-somente um menor
abandonado.

– Anderson Herzer, ‘O… poema a um pai adotivo’

Suicídio é terrivelmente comum em nossa comunidade e seria irresponsável se não falássemos sobre algumas das razões por trás disso. A vida para jovens LGBTs nunca foi necessariamente fácil. Descobrir que você não é cisgênero ou/nem heterossexual em uma sociedade tão heteronormativa é quase uma tarefa hercúlea, e não fica mais fácil com o tempo. Estamos rodeados por um mundo que pensa que nossa natureza é algo do qual se envergonhar ou a ser escondido.

Diante de tantos obstáculos, a comunidade frequentemente é forçada a ficar quieta, o que impede pessoas de se conectarem. Mesmo que isso tenha ficado significativamente mais fácil graças à internet, ainda é muito difícil. Um exemplo é a forma como a comunidade LGBT foi por décadas associada à pedofilia, o que impede muitos jovens de buscarem e aceitarem ajuda.

Isso também tem efeitos negativos para adultos LGBT, fazendo-os se sentir alienados de uma comunidade em expansão. Essa falsa conexão faz com que pais tenham medo de deixar seus filhos se aproximarem. Anderson, entretanto, mal tinha acabado de sair da adolescência, então queremos nos voltar para os jovens.

Aos membros mais jovens da comunidade lhes falta um componente vital: orientação. Eles estão isolados e é esperado deles descobrir tudo sobre suas identidades e vidas sozinhos. Essa separação nos fez perder muitos, incluindo Anderson. Um poeta que nunca teve um momento de paz em sua vida e que merecia muito mais. Toda nossa juventude merece mais.

Capa do livro "A Queda para o Alto", lançado no ano da morte de Anderson Herzer (Foto: Reprodução)
Capa do livro “A Queda para o Alto”, lançado no ano da morte de Anderson Herzer (Foto: Reprodução)

Mas não foi somente falta de orientação que levou Anderson a se suicidar. Houve muitos traumas dos quais ele nunca conseguiu se recuperar, mesmo quando teve acesso a mentores. Além de uma infância já difícil, ele foi empurrado para uma instituição penal superlotada e mal administrada, onde recebeu o pior tratamento humano possível.

Um alento que devemos citar é que, ao menos, a história de Anderson não foi perdida. Seu primeiro e único livro, “A Queda para o Alto”, foi publicado no mesmo ano de sua morte e adaptado inúmeras vezes para o teatro. Sua biografia serviu de inspiração para o filme “Vera”, premiado no Festival de Cinema de Berlim. E, por mais que seu fim tenha vindo muito cedo, ele definitivamente foi peça fundamental na abertura de um caminho que, hoje, nos possibilita termos uma Antologia Trans, com mais de 30 poetas transexuais, travestis e não-binários. Herzer ainda é presença.

Tentei, venci, porém um dia faleci.
A vitória conquistei, hoje estou na sua lembrança.
Sou talvez uma alma oculta, eu que fui esperança.

– Anderson Herzer, ‘A Gota de Sangue’

LEIA TAMBÉM —> Em 1987, “Vera” debateu no cinema diferenças entre sexualidade e gênero

LEIA TAMBÉM —> As muitas dimensões humanas da “Antologia Trans”


Este texto foi adaptado do original de Laura Darling e faz parte do projeto Making Queer History, cuja existência só é possível graças a doações. Se tiver interesse, você pode fazer uma doação única no Paypal ou tornar-se um Patrono.  

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