Revista Híbrida
História Queer

Safo das Lebos, a pioneira lésbica que a literatura tenta apagar

*Texto original de Laura Mills

Para a estreia da coluna História Queer, uma parceria com o projeto canadense “Making Queer History”, pensamos que seria melhor começarmos o mais próximo possível do início, apesar de já adiantarmos que o projeto irá saltar pelo tempo a partir daqui. E, apesar de ser impossível descobrir qual foi o primeiro humano que tenha sentido atração por alguém do mesmo gênero, vamos voltar vários capítulos da história, até a origem da palavra que caracteriza a atração entre mulheres, personificada numa de suas figuras mais reconhecíveis: Safo das Lebos.

Safo foi uma poeta, nascida em algum momento entre 630 e 612 antes de Cristo, que passou a maior parte do seu tempo na ilha de Lesbos. Isso a coloca na Grécia, durante um período particular, no qual era muito mais aceitável sentir-se atraída por pessoas do mesmo gênero que nos dias de hoje. E Safo aproveitou totalmente esse fato.

Na verdade, sua reputação de amar mulheres, combinada com a reputação da ilha, levou à criação da palavra “lésbica”.

Apesar de a palavra “safo” ter começado como uma descrição para a felação entre uma mulher e um homem, sua reputação a transformou no sentido que usamos hoje. Essa não é a única forma que ela afetou a linguagem usada atualmente; seu próprio nome é usado para descrever o amor romântico entre duas mulheres na palavra “sáfico”.

"Safo e Erinna em um jardim em Mytilene", 1864 (Foto: Galeria Tate Britain | Reprodução)
“Safo e Erinna em um jardim em Mytilene”, 1864 (Foto: Galeria Tate Britain | Reprodução)

Seu lugar como representante e sinônimo da comunidade de mulheres que se sentem atraídas por outras mulheres não é somente simbólico, mas também literário. Fragmentos que permaneceram de sua poesia contêm inúmeras menções de outras mulheres em contextos eróticos. Ainda assim, muitos acadêmicos insistem que ela possa ter sido heterossexual. Agora, nós discutiremos o porquê e como disso.

Safo é classificada como uma das maiores poetas de todos os tempos, desde que existem classificações de poetas, e ela mais do que mereceu sua posição. Seu trabalho foi tanto prolífico quanto revolucionário em seu tempo, abrindo caminho para milhares de outros poetas que vieram depois dela, homens ou mulheres. Enquanto muito do seu trabalho foi perdido na destruição da Biblioteca de Alexandria, e muito dele foi destruído por líderes religiosos, os fragmentos que foram recuperados são o suficiente para que ela continue sendo lembrada e admirada. Às vezes, a despeito de sua homossexualidade, e outras vezes devido a ela.

Então, além das razões cronológicas que escolhemos para começar com este assunto, a ginástica mental que as pessoas precisam fazer para assumir que Safo era hétero serve como um ponto apropriado para começarmos essa narrativa, pois isso mostrará exatamente o tipo de forças com as quais lidaremos ao longo do crescimento deste projeto.

Levando em consideração o preconceito que existe por trás da lógica dos acadêmicos que tentam tão desesperadamente fingir que ela era hétero, por que eles, mesmo que tenham tido a oportunidade para fazê-lo, não a apagaram inteiramente dos livros de história?

Você talvez esqueça, mas deixe-me falar isto:

alguém no futuro pensará sobre nós”

– Safo

Parece uma solução bem mais simples: acobertar a história, ao invés de reescrevê-la. Ela não seria a primeira pessoa queer a ser apagada, e isso teria sido fácil. Até mesmo hoje, não nos resta muito do trabalho dela ou de sua vida, pois o tempo nos deixou muito pouco para examinar. Ela é lembrada e altamente glorificada até mesmo pelas pessoas que se esforçam tanto para ver a história somente como heterossexual.

Uma possível razão para que o seu legado ainda perdure pode ser a forma como é  simplesmente impossível ignorá-la. “A Poetisa” para o “Poeta” de Homero, uma dos nove grandes letristas e, segundo Platão, a Décima Musa, Safo é indubitavelmente inesquecível. Nos resta muito pouco de seu trabalho, mas ela originalmente tinha nove volumes de poesia, todos bastante amados e referenciados por outros famosos escritores. Platão, que era conhecido por não gostar de poesia, até disse: “Alguns dizem que as Musas são nove: que tolos são!/Veja, existe Safo também, de Lesbos, a décima”.

Horácio escreveu em suas Odes que o trabalho de Safo era digno de admiração sagrada e ela não era alguém que poderia desvanecer ao longo da história. Sua produção é reconhecida como uma das melhores obras poéticas de todos os tempos, cheia de perspicácia e eloquência, inspirando outros autores por milhares de anos por vir.

Devido ao seu trabalho, ficou aos historiadores o dilema de querer consumir o trabalho de uma pessoa queer sem dar nenhum crédito a alguém queer. Desprovidos da habilidade de apagá-la da história e atribuir suas realizações a outra pessoa, parece que a segunda melhor opção para a maioria foi a de ignorar sua sexualidade.

Safo de Lesbos representada em afresco romano do ano 50 d.C. e redescoberto em 1760 (Foto: Museu Arqueológico de Napoles | Reprodução)

Na sociedade convencional na qual ela viveu, mesmo sendo aceitável estabelecer conexões românticas e sexuais com outras mulheres ainda que ela mesma fosse uma, cada era seguinte parecia tentar retroativamente mudar isso. Acadêmicos se esforçaram incansavelmente para elaborar teorias absurdas de que ela era heterossexual, tentando achar uma brecha ou uma ambiguidade textual que pudessem usar para não admitirem que um trabalho tão influente possa ter sido escrito por uma pessoa queer.

Nós iremos agora analisar algumas das ridículas teorias sobre como Safo pode ter feito o trabalho que fez, deixado a reputação e o legado que deixou, e ainda assim ser heterossexual. Uma das teorias menos populares é a de que existiram, na verdade, duas Safos: uma que era uma grande poeta, e outra que foi uma “notória vadia.” Não surpreendentemente, existe pouca ou nenhuma evidência de que esse seria o caso.

Outros acadêmicos já tentaram dar-lhe um marido ou um amante masculino, trabalhando sob a crença equivocada de que ela não poderia ter tido um relacionamento com um homem e ainda assim sentir atração por mulheres – até porque, a bissexualidade existe. Apesar de a existência de um marido não negar a sua natureza queer, o nome de seu alegado cônjuge possuía uma tradução parecida com “Pênis, da Ilha dos Homens”. Logo, sua existência é improvável. Ao mesmo tempo, a fonte principal desta informação é O Suda, que também registra oito possíveis nomes para o pai de Safo e, logo, dificilmente seria uma referência sólida.

A forma erótica na qual Safo descrevia as deusas foi explicada pelos acadêmicos ao colocá-la no papel de uma sacerdotisa que estaria somente fazendo seu trabalho. Na Era Vitoriana, alguns tentaram caracteriza-la como a administradora de uma escola para meninas, mas não existe nenhuma evidência registrada que valide essa mudança em ocupação.

Após anos surgindo com diferentes teorias do porquê ela poderia ter sido heterossexual, a mais comum agora é a de que sua poesia não era autobiográfica. Alguns até sugerem que ela foi a pessoa que inventou o “eu lírico”, termo para poemas que põem o autor como um substituto para o leitor. Se tal afirmação é verdade, então nós realmente não sabemos nada sobre quem foi a Safo de verdade.

Safo e as suas alunas na Ilha de Lesbos (Foto: Reprodução)

Muitos acadêmicos parecem satisfeitos em aceitar que os poemas são autobiográficos quando ela está debatendo sobre outras coisas, como política, ou uma briga com um amigo. Mas quando falamos de sua sexualidade, eles desaprovam tal teoria. Quase tudo que sabemos sobre ela é especulação; ninguém tem relatos precisos de sua vida. O que temos, na melhor das hipóteses, são rumores e fofocas. Exceto sua poesia.

Sua poesia é a única parte segura de Safo que possuímos. Assim, por que acadêmicos correm para enciclopédias e apresentam teorias, ao invés de ver seu trabalho e deixá-lo falar por si só?

Através dos anos, teoria após teoria é apresentada e subsequentemente refutada. Apesar de muitas pessoas afirmarem que ela foi heterossexual, Safo ainda é uma parte reconhecível da cultura queer. Se é pela obviedade de sua identidade queer ou pela própria comunidade LGBT, que se recusa a permitir o apagamento da poeta para a heterossexualidade, é debatível. Mas, provavelmente, é uma mistura saudável dos dois.

Safo tanto se tornou uma representante da comunidade das mulheres que se sentem atraídas por mulheres quanto foi poeta. Grupos ativistas foram nomeados a partir dela, livros foram escritos sobre ela, as próprias pessoas queer se identificam com ela; ela é a prova de que homossexualidade não é algo novo, mas tão antigo quanto as próprias lendas.

Mesmo que sua vida pessoal tenha encarado quantidades incríveis de especulação – e aí fica difícil desembaralhar a verdade da ficção -, ela se tornou mais do que isso: um símbolo. Apesar dos esforços de acadêmicos parciais que afirmam que a comunidade LGBT é quem ignora a realidade, enquanto citam uma fonte tão refutável quanto a Wikipédia, ela se manterá assim por muitos anos por vir.

Embora seja indiscutível que tentativas de apagar sua sexualidade continuarão, sempre foi, e é impossível de ignorar, que o amor de Safo pelas mulheres foi sáfico.

Este texto faz parte do projeto Making Queer History cuja existência só é possível graças a doações. Se tiver interesse, você pode fazer uma doação única no Paypal ou tornar-se um Patrono.  

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