No livro “Viagem ao Norte do Brasil feita nos anos de 1613 e 1614”, o missionário francês Yves d’Évreux, da Ordem dos Capuchinhos, narra a execução de um indígena tupinambá que teve sua cintura amarrada na boca de um canhão instalado no Forte de São Luís do Maranhão. Quando os franceses e nativos rivais presentes lançaram fogo, metade do corpo caiu em terra e, o restante, desapareceu no mar. Este relato cruel trata-se do primeiro registro detalhado de homofobia em território brasileiro, praticado contra um nativo conhecido como Tibira do Maranhão.
Tibira, termo tupi utilizado para designar aqueles que não se encaixavam nos padrões ocidentais de sexualidade, foi perseguido e torturado sob ordenação de d’Évreux pela prática da “sodomia” e por, segundo ele, parecer “no exterior mais homem”, mas ser “hermafrodita” e ter “voz de mulher”. Embora tenha tentado escapar, o indígena foi capturado e executado em praça pública.
Antes de morrer, o jesuíta batizou-o de Dimas – significando “bom ladrão”, ou aquele que foi perdoado por Cristo na crucificação. Suas palavras finais, de acordo com a pesquisa do antropólogo e fundador do Grupo Gay da Bahia, Luiz Mott, foram: “Vou morrer, não mais os verei, não tenho mais medo de Jurupari pois sou filho de Deus, não tenho que prover-me de fogo, de farinhas, de água e nem de ferramenta alguma para viajar além das montanhas, onde cuidais que estão dançando vossos pais. Dai-me porém um pouco petum (tabaco, na língua tupinambá) para que eu morra alegremente, com a palavra firme e sem o medo que me estufa o estômago”.
O trágico destino de Tibira serviu, na época, para que a moralidade religiosa dos colonizadores europeus fosse imposta aos nativos. A morte espetacularizada, enfim, demonstrava como deveria ser reprimida qualquer prática que fosse considerada desviante dos padrões cristãos, patriarcais e heteronormativos da cultura ocidental.
Atualmente, o resgate desta história nos ajuda a perceber como o apagamento e hostilização às diferentes sexualidades dos povos originários foram um dos grandes males trazidos pela colonização. De acordo com o antropólogo Estevão Rafael Fernandes, “a visão que o colonizador tem sobre como é um indígena não se encaixa no indígena de carne e osso […] o colonizador lhe impõe, historicamente, um simulacro, um dever-ser”.
Na luta pela memória de Tibira, o Grupo Gay da Bahia lançou, em 2014, uma campanha a favor da canonização de Tibira como o primeiro mártir gay indígena brasileiro e, dois anos depois, uma lápide foi instalada na Praça Marcílio Dias, no centro da capital maranhense, em sua homenagem.
Neste 19 de Abril, dia de celebrar a Diversidade Indígena, torcemos para que o legado de Tibira continue sendo lembrado como forma de resistência e combate à exclusão de indígenas LGBTQI+, silenciados pela mentalidade preconceituosa colonial presente até hoje em nossa sociedade.
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