Híbrida
HISTÓRIA QUEER

O poliamor e as mulheres de Vita Sackville-West no século XX

Vita Sackville-West e o poliamor lesboafetivo em pleno século XX (Foto: Reprodução)

*Texto adaptado do original de Grace Wordsworth

Na Inglaterra do século XX, o Círculo de Bloomsburry foi um grupo de artistas, autores e intelectuais queer que desejavam quebrar o molde da sociedade Vitoriana de então. Entre seus maiores membros, estavam Virginia Woolf e sua irmã, a pintora Vanessa Bell, o romancista Edward Morgan Forster (“Um quarto com vista”), T. S. Elliott (“Cats”) e Vita Sackville-West, tema desta edição da História Queer.

O ideal modernista que norteava o Círculo de Bloomsburry foi aplicado por Vita tanto em seus textos quanto em sua vida. Nascida entre a aristocracia britânica, seu privilégio permitiu que ela circulasse entre os membros mais nobres da sociedade, ao mesmo tempo em que lutava para reconstruir o legado que foi tomada de sua família logo após seu nascimento.

Nascida na Mansão de Knole em 1892, Vita era a filha bastarda de Lionel Sackville-West, dono de uma propriedade com mais de 1.000 acres e uma das cinco maiores casas em toda a Inglaterra. A gravidez ilegítima de sua mãe eventualmente fez com que elas fossem expulsas do lugar e, mesmo após tendo vencido no tribunal o direito de permanecer ali, a jovem escritora nunca mais retornou ao lar onde passou o início de sua infância.

“Eu idolatrei homens mortos por sua força, esquecendo que eu era forte”

– Vita Sackville-West

Desde o início, Vita demonstrou rejeição aos padrões heteronormativos de sua época. Apesar de não ter se autodeclarado como tal, é possível afirmar que ela tenha sido bissexual ou pansexual. Ao longo de sua vida, é possível encontrar registros de relacionamentos que a escritora manteve com homens e mulheres, sempre da forma apaixonada que descrevia em seus textos.

A primeira mulher com quem ela se relacionou foi Rosamund Grosvenor, amiga de infância que, mais tarde, se tornaria madrinha do seu casamento. Sobre essa descoberta do amor com outra mulher, Vita escreveria o seguinte:

“Nós sentamos em um quarto escuro e conversamos – sobre nossos ancestrais, de todos os assuntos estranhos – e no hall, enquanto eu me despedia, ela me beijou. Eu criei uma pequena canção aquela noite, ‘Eu tenho uma amiga!’. Lembro-me tão bem. 

Quero dizer novamente que essa coisa começou de forma inocente. Ah, eu ouso dizer que percebi vagamente não ter o direito de dormir com Rosamund, e certamente eu não deveria nunca ter deixado ninguém descobrir, mas meu senso de culpa não foi adiante…”

Harold Nicholson, Vita Sackville-West, Rosamund Grosvenor e seu pai fotografados em Londres, em 1913 (Foto: Reprodução)
Harold Nicholson, Vita Sackville-West, Rosamund Grosvenor e seu pai fotografados em Londres, em 1913 (Foto: Reprodução)

Apesar de Rosamund ter se tornado mais uma amiga do que uma amante com o passar dos anos, Vita ainda sim manteve relacionamentos com outras mulheres, vide uma de suas maiores e mais violentas paixões: a socialite e também escritora Violet Keppel. O romance entre as duas durou anos e continuou mesmo depois de Vita ter se casado com Harold Nicolson, ainda que a união “heterossexual” da amante tivesse tirado-a do sério, por enxergar que a relação havia “domado” Vita.

Uma das passagens mais curiosas desse relacionamento são as vezes em que as duas mulheres saíam para curtir a noite de Londres como um casal, mas com Violet saía vestida em roupas masculinas. Vita escreveu sobre esses momentos:

“Eu via pessoas que conhecia e me perguntava o que aconteceria se elas soubessem a verdade sobre o garoto desleixado com a cabeça enfaixada e a aparência afeminada, e se elas reconheceriam a mulher silenciosa e desdenhosa com quem talvez tenham esbarrado ou dançado em um jantar?

Eu nunca apreciei tanto algo como viver daquela forma, com a minha língua perpetuamente presa e desafiando todos os policiais pelos quais passávamos.”

É importante lembrar que, nessa época, relacionamentos homoafetivos eram proibidos por lei na Inglaterra e passíveis de punição, que poderia chegar à prisão ou castração química. E, mesmo que relações lésbicas não fossem expressamente proibidas, ainda eram mal vistas pela sociedade. Por isso, o casamento entre Harold e Vita não era nada convencional, uma vez que ele era notadamente gay e, juntos, eles mantinham uma das relações poligâmicas mais bem documentadas daquele período.

Vita Sackville-West e Violet Keppel fotografadas na casa de Violet (Foto: Reprodução)

Para a escritora, a relação com o marido era uma mistura de lua-de-mel com parceria fraternal e intelectual, como ela bem documentou no livro “Retrato de um casamento” (“A Portrait of a Marriage”) cujo manuscrito foi encontrado pelo filho do casal, Nigel Nicolson, após a morte da mãe.

Para Violet, entretanto, a paz e a parceria que Vita encontrou no casamento com um homem era inadmissível, como ela demonstrou em uma das muitas cartas enviada à amante:

“Eu irei lhe mostrar traição, infâmia, mulheres sem escrúpulos, sem vergonha. Eu irei lhe mostrar loucura, Vita (loucura, me ouviu?), a mesma que escapa dos dedos de uma mulher que viu seu marido ser estripado no domingo em plena tourada!”.

O trecho define bem o caráter explosivo da paixão que uma alimentava pela outra. O relacionamento entre elas cresceu de tal maneira que, em determinado momento, elas tentaram fugir para a França e largar seus casamentos para trás. Inclusive, o plano teria dado certo, não fosse por Denys Trefusis, marido de Vita, que seguiu as duas pela Europa e acabou reconquistando Violet, pondo um fim definitivo ao relacionamento entre as duas escritoras.

Casamento poligâmico com um homem gay

É nesse ponto da história que entra Harold Nicolson. Enquanto o marido de Violet perseguia a esposa com medo de ser largado, Harold deixava Vita correr livremente, com a certeza de que ela eventualmente voltaria para ele. E sua suspeita era mais do que confirmada pela escritora que, em uma de suas cartas, declarou:

“Harold era como um porto ensolarado para mim. Tudo era aberto, franco, certeiro; e mesmo que eu nunca tenha conhecido a paixão física que havia sentido por Rosamund, eu realmente não sentia falta. E esse sentimento durou intacto por cerca de quatro anos e meio.”

Nigel, filho do casal, também relatou a natureza da relação entre os pais ao apresentar o livro deixado pela mãe com a seguinte passagem de seu diário, escrita antes de ela se casar:

“[Harold] era alegre e inteligente como sempre foi, e eu amava seu cérebro e sua juventude, e me sentia lisonjeada que ele gostasse de mim… Eu ainda não estava apaixonada por ele… Mas eu de fato gostava dele mais do que qualquer pessoa, como companhia e colega, e por sua mente e sua disposição deliciosa. Eu ansiava que ele me pedisse em casamento….”

De acordo com os relator de Nigel, a união entre Harold e Vita foi mais uma forma que seu pai encontrou de “proteger a reputação” da mãe do que de controlá-la seus impulsos. Ele entendia e apoiava as paixões de sua esposa, antes e depois do casamento, a ponto de ter se tornado um dos principais incentivadores do romance que ela manteria mais tarde com Virginia Woolf.

Harold Nicolson e Vita Sackville-West (Foto: Reprodução)

Como Virginia em breve terá seu próprio capítulo aqui na coluna, vamos simplificar a história e dizer que, além de uma das maiores romancistas da língua inglesa, ela também foi uma mulher com sérios problemas psicológicos e que não demonstrava interesse em nenhum tipo de relacionamento sexual. Mesmo assim, foi ela quem “seduziu” Vita, ainda que tivesse deixado claro suas intenções puramente românticas (e correspondidas pela outra).

Em uma carta para Harold, Vita confessou:

“Estou morrendo de medo de despertar sentimentos físicos em Virginia, por causa da loucura. Amá-la é uma coisa completamente diferente: algo mental; algo espiritual… E algo intelectual”

“A loucura” era como a sociedade do século XX se referia aos transtornos psicológicos de Virginia Woolf. A declaração de Vita, entretanto, indicava a compaixão que ela sentia pela amada e o respeito que demonstrou aos seus limites. A paixão acabou gerando um dos primeiros protagonistas de gênero fluído na literatura britânica, quando Virginia escreveu o romance “Orlando: Uma Biografia” (1928, publicado no Brasil pela Companhia das Letras), com Vita em mente.  Nele, o personagem muda seu pronome de masculino para o feminino no meio da história, enquanto reivindica a casa da qual foi expulsa.

O relacionamento entre Vita Sackville-West e Virginia Woolf foi retratado no filme “Vita & Virginia” (2018), dirigido por Chanya Button (Foto: Reprodução)

Para além de seus relacionamento amorosos, Vita ganhou inúmero prêmios literários ao longo de sua carreira, além de ter vivido alguns dos maiores romances de sua época, dentro e fora dos livros. Após uma vida plena e bem sucedida, a escritora faleceu aos 70 anos, deixando um vasto legado literário para as gerações futuras.

Para encerrar esse capítulo da História Queer, deixamos aqui uma citação encontrada pelo filho de Vita em seus manuscritos:

“A psicologia de pessoas como eu será um ‘tópico de interesse’ quando a hipocrisia der lugar a um espírito de candura que, eu espero, irá se espalhar com o progresso do mundo”


Este texto faz parte do projeto Making Queer History, cuja existência só é possível graças a doações. Se tiver interesse, você pode fazer uma doação única no Paypal ou tornar-se um Patrono.  

Notícias relacionadas

Ilha de San Domino, a prisão que virou reduto gay na Itália fascista

Anghel Valente
6 anos atrás

Josephine Baker, a dançarina, ativista e espiã bissexual que lutou contra o Nazismo

Anghel Valente
5 anos atrás

Chavela Vargas: amante de Frida Kahlo, musa de Almodóvar e artista prolífera

Maria Eugênia Gonçalves
3 anos atrás
Sair da versão mobile