A principal forma de “provar” que alguém é assexuade, não-binárie, gênero-fluido, lésbica ou bissexual é através da autoidentificação. No entanto, isso não é possível para determinados sujeitos que fizeram parte da História, seja porque a sexualidade ou o gênero foram mantidos como segredo para sua própria sobrevivência ou porque tais rótulos não eram comumente utilizados naquela época.
A poeta e pensadora Zinaida Gippius é exemplo disso.
Nascida em 20 de novembro de 1869, na cidade de Beliov, Rússia, Gippius alternou ao longo de sua carreira entre os gêneros masculino e feminino, inclinando-se muitas vezes para o masculino, embora nunca tenha dado para si uma definição exata de quem era.
A mais velha de quatro irmãs, Gippius viveu uma infância um tanto quanto turbulenta. Filha de um alto funcionário do Senado russo, cujo trabalho exigia viagens constantes, ela recebeu pouca educação formal e frequentou escolas esporadicamente nas cidades por onde passou. Apesar disso, nada a impediu de começar a escrever poesias aos 7 anos de idade.
Em 1888, ela conheceu o aspirante a romancista Dmitry Merejkovski, que a impressionou à primeira vista como uma “alma gêmea perfeita”. Apaixonados, os dois se casaram um ano depois e fizeram um pacto de se dedicarem ao que faziam de melhor: ela, escrever poesias; e ele, prosa.
Em São Petersburgo, Gippius juntou-se à Sociedade Literária Russa e publicou na Severny Vestnik, uma importante revista do país. Seus poemas muitas vezes exploravam a ambigüidade sexual e seus detratores chamavam-na de “demônio”, “rainha da dualidade” e “Madonna decadente”.
Durante seu casamento, ela se envolveu também com o escritor Dmitry Filosofov, que se tornou amigo pessoal de Merejkovski, seu marido. A relação entre os três acabou desempenhando um grande papel tanto na religião quanto na escrita de Gippius. Uma de suas peças, Poppie Blossom, tinha os dois parceiros como co-autores. Em 1919, contrários à Revolução de Outubro, eles se exilaram na Polônia e, depois, na França e na Itália. Filosofov eventualmente separou-se do trio.
Ao longo de sua vida, é sabido que a poetisa se sentiu atraída e manteve relacionamentos com homens e mulheres, mesmo casada. Na verdade, grande parte de sua filosofia era baseada na ideia de que o amor era puro e uma experiência religiosa, não importa quem fosse o sujeito. “É igualmente bom e natural para cada pessoa amar qualquer outra pessoa. O amor entre os homens pode ser infinitamente belo e divino como qualquer outro. Sinto-me igualmente atraída por todas as criaturas de Deus, quando estou atraída”, escreveu.
Gippius também acreditava que o ser humano era composto de múltiplas partes (geralmente resumidas em três) e cada uma delas podia estar mais próxima de cada um dos dois gêneros binários. A existência da androginia, inclusive, não foi ignorada por ela, já que foi utilizada em suas obras.
Um de seus personagens foi indagado de maneira similar aos questionamentos que atualmente são feitos a sujeites não-bináries:
“Apenas responda uma coisa se puder/Você é uma mulher? Você é um ‘ele’ ou uma ‘ela’?”
Ao que o personagem inicialmente se recusa a responder, antes de finalmente dizer:
“Mas eu aprecio o nome de seu ancestral E por ele cruzarei a linha do silêncio / Para responder à sua pergunta. Minha resposta é simples: não sei.”
As roupas utilizadas pela autora também ilustravam seu aspecto queer. Ora se vestia como dândi (considerado um homem de bom gosto estético), ora exalando feminilidade. Seu assistente Vladimir Zlobin chegou a escrever sobre isso:
“Ela era um ser estranho, quase como alguém de outro planeta. Às vezes ela parecia irreal, como costuma acontecer com pessoas de beleza muito grande ou feiúra excessiva. Vermelho tijolo cobrindo suas bochechas e cabelos tingidos de ruivo que pareciam uma peruca. Ela se vestia elaboradamente com xales e peles (sempre sentia frio) nos quais se enredava irremediavelmente. Seus trajes nem sempre eram bem-sucedidos e nem sempre condiziam com sua idade e posição. Ela se transformava em um espantalho.”
Gippius faleceu em 9 de setembro de 1945, cinco anos após Filosofov e quatro antes de Merejkovski. Seu legado até hoje é reverenciado em seu país de origem como uma das principais figuras do simbolismo russo. Além de seu trabalho, sua liberdade com relação ao gênero ainda segue como exemplo dentro dos estudos e reflexões sobre a teoria queer.
“Não desejo feminilidade exclusiva, assim como não desejo masculinidade exclusiva. Cada vez que alguém é insultado e insatisfeito dentro de mim; com mulheres, minha feminilidade é ativa, com homens – minha masculinidade! Em meus pensamentos, meus desejos, em meu espírito, sou mais homem; em meu corpo, sou mais mulher. No entanto, eles estão tão fundidos que não sei”, refletiu certa vez.