No dia 24 de julho, a Suprema Corte dos EUA, que conta com uma maioria conservadora histórica, reconsiderou o caso Roe V. Wade, julgado em 1973, e acabou com o direito ao aborto assegurado há quase 50 anos. Dos nove juízes de hoje, seis foram nomeados por presidentes republicanos – a metade deles pelo ex-presidente Donald Trump. A medida despertou o medo de que outros direitos, como o casamento igualitário entre pessoas do mesmo gênero e até mesmo o casamento interracial, possam estar ameaçados. Agora, democratas correm atrás do apoio de republicanos para assegurar essas conquistas e transformá-las em leis no Congresso.
Em 1958, Mildred e Richard Loving foram condenados a um ano de prisão após se casarem. O motivo? Richard era um homem branco e Mildred uma pessoa “de cor”. Na Virgínia, Estado onde viviam, vigorava uma lei de 1924 chamada “lei da integridade racial”, que punia o crime da “miscigenação” com a prisão.
Os Lovings não foram presos porque fizeram um acordo: se mudaram da Virgínia para o Distrito de Columbia e foram banidos de pisarem no Estado onde nasceram por 25 anos. Eles recorreram da decisão até chegarem à Suprema Corte que, em 1967, quase uma década depois, votou por unanimidade pela inconstitucionalidade da lei estadual racista. Essa votação, mais especificamente o precedente criado por ela, foi o que assegurou o direito ao casamento interracial em todo o território dos EUA.
O casamento entre pessoas do mesmo sexo, que acontece hoje em todos os 50 estados e em todos os territórios do país, também se tornou realidade graças a uma decisão, muito mais apertada, da mesma Suprema Corte. Em 2013, James Obergefell e John Arthur moravam e decidiram se casar em Ohio, um Estado onde a união entre dois homens ainda não era permitido. Eles viajaram até Maryland e selaram seu matrimônio lá.
O Estado de Ohio, porém, não reconheceu o casamento realizado em Maryland. Como John sofria de Esclerose Lateral Amiotrófica, uma doença terminal, o casal entrou na justiça para garantir o direito de ter James reconhecido como marido na futura certidão de óbito que seria, mais cedo ou mais tarde, emitida por Ohio.
Essa batalha judicial chegou à votação final na Suprema Corte dos Estados Unidos em 2015, quando uma vitória apertada de 5-4 tornou ilegal qualquer lei local que restringisse o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Assim, o casamento igualitário tornou-se uma realidade em todo o território nacional.
Cenário atual
A maioria conservadora que comanda a Suprema Corte dos EUA hoje é uma ameaça real a essas e outras conquistas históricas. Clarence Thomas, juiz nomeado por George Bush (o pai) em 1991, já deixou claro que os ministros devem revisitar decisões recentes como aquela que reconheceu o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
No Brasil, não é diferente: a união homoafetiva foi reconhecida graças a uma decisão do STF, em 2011. Logo, uma nova configuração da corte, seja em quatro ou 50 anos, pode acabar com esse direito duramente conquistado – e ainda frágil sem apoio na legislação.
O que os defensores desses direitos adquiridos tentam fazer agora nos EUA, ainda que com certo atraso, é blindar as conquistas tornando-as leis. Sendo assim, o Senado deve votar ainda neste mês o Respect for the Marriage Act (RFMA), uma proposta de lei apresentada em 2009 por Bob Barr, ex-deputado democrata.
O texto é um contra-ataque direto à lei Defense of the Marriage Act (DOMA), aprovada por Bill Clinton (também democrata) em 1996 e que reconhece o matrimônio como a união apenas entre um homem e uma mulher. A lei nunca foi colocada em votação por causa da decisão da Suprema Corte. Agora, porém, os democratas trouxeram a proposta de volta ao Congresso, no intuito de garantir na lei federal o casamento interracial e entre pessoas do mesmo gênero.
Mas transformar esses direitos básicos em leis não é tão simples. O principal problema no caminho: os republicanos. A maioria apertada dos democratas na Câmara e o Senado dividido exige que os parlamentares da oposição conservadora ao governo de Joe Biden votem em conjunto com a ala governista.
O primeiro teste dessa equação foi um sucesso: dos 211 deputados republicanos, 47 foram a favor da proposta e fizeram com que ela passasse na Câmara. Sim, parece pouco, mas 47 votos republicanos a uma proposta democrata não é algo comum. Os motivos do número elevado de votos são muitos, mas o principal deles é a eleição de novembro.
Ao contrário do Brasil, o cargo de um deputado nos EUA dura dois anos. Logo, estamos às vésperas de uma eleição de meio de mandato, que renovará toda a Câmara dos Deputados. Dentre os 47 votos republicanos, muitos procuram a reeleição em distritos onde há uma disputa acirrada com os democratas.
Outro fator importante são os deputados que estão se aposentando: ainda que eleitos por distritos conservadores, oito deles não buscam a reeleição e votaram a favor sem medo de sofrer represália nas urnas. Liz Cheney, deputada perseguida por Donald Trump após seu voto a favor do impeachment, também disse sim à proposta de lei – muito provavelmente porque sabia que não teria chances de se reeleger nas primárias republicanos do seu distrito, fortemente trumpista.
Desafio no Senado
No Senado é outra história. Apesar de os democratas estarem esperançosos, é preciso que dez dos 50 senadores republicanos apoiem a proposta. Até agora, apenas quatro votos são tidos como garantidos. Ainda assim, o senador Thom Tillis, republicano da Carolina do Norte que votará pelo “sim”, deu a entender que pelo menos 10 republicanos apoiarão o projeto.
Se aprovada, a lei será, talvez, a maior vitória do governo Biden e uma prova importante da capacidade de diálogo do governo com setores mais moderados dentro do partido republicano, fazendo frente ao trumpismo e ao ultraconservadorismo.
No Brasil, um projeto de lei apresentada pelo então deputado federal Jean Wyllys (à época do PSOL) e Érika Kokay (PT) tentou o mesmo objetivo em 2013. A configuração do congresso brasileiro, porém, com crescente influência conservadora e fundamentalista, fez com que a proposta nunca fosse apreciada.
Em tempos de eleição, é importante estarmos atentos à oportunidade de elegermos deputados e senadores comprometidos com a garantia de direitos. E claro, só porque o lado de lá ataca o STF, não devemos deixar na mão deles alguns direitos tão importantes, como o de se casar com quem bem entendermos.