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Folsom Europe: a festa de sexo, fetiches e BDSM nas ruas de Berlim

Performance de bondage durante o Folsom Europe, em Berlim (Foto: Hal Paes | Revista Híbrida)

Berlim, talvez a mais cosmopolita das capitais europeias, é também a sede daquele que é o maior evento do continente – e talvez do mundo – voltado a fetiches sexuais: o Folsom Europe, festival que há 15 anos lota o bairro gay de Schonenberg com alegorias de subculturas ligadas ao BDSM e ao Leather (couro).

Normalmente, fantasias sexuais fazem parte daquilo que é relativo à sexualidade, mas não é visível: objetos, corpos, performances de gênero e narrativas reservam-se aos territórios privados ou aos cantos escuros das cidades. Mas em Berlim, que já foi conhecida como Sin City (Cidade do Pecado) e Metropolis of Vice (Metrópole do Vício), o Folsom representa exatamente a transgressão disso: é uma radical apropriação do espaço urbano como lugar de trânsito para desejos e fetiches variados, expostos a olho nu e ao ar livre.

Embora o Folsom Europe tenha começado oficialmente só em 2003, a cidade de Berlim já possuía há décadas outros eventos ligados a fetiches e, em especial, à cultura Leather. Naquele ano, entretanto, a estratégia foi adotar uma proposta parecida com a do evento de mesmo nome que acontece em São Francisco, nos EUA, com uma atração pública, gratuita e realizada durante o dia, na rua, para celebrar a liberdade sexual e os mais variados fetiches. Hoje, a programação atrai um público que cresce todos os anos e se desloca dos mais diferentes cantos do mundo.

Turista exibe faixa de "Mister Leather Belrim" durante o Folsom Europe (Foto: Hal Paes)
Jens Walker, “Mister Leather Belrim”, durante o Folsom Europe (Foto: Hal Paes)

Glossário de fetiches sexuais

Para transitar pelo festival e mergulhar nesse universo é preciso compreender antes uma nova linguagem e um novo vocabulário, já que muitos fetiches possuem nomes e códigos próprios. Por exemplo, a sigla BDSM significa bondage, disciplina, sadismo e masoquismo; bondage é o uso de cordas ou objetos que possam manter a pessoa imobilizada durante o ato sexual; a disciplina é a obediência, materializada na existência de um dominador e de um submisso (escravo); o sadismo se refere ao ato de infligir dor para sentir prazer; e o masoquismo é sentir dor como forma de obter ou aumentar o próprio prazer.

Em meio ao Folsom Europe, rapaz passeia pelas ruas de Schonenberg com vestimentas de BDSM (Foto: Hal Paes | Revista Híbrida)

O leather, outro fetiche comum nas ruas de Schonenberg, se refere à excitação associada a roupas e acessórios de couro, constituindo um universo repleto de códigos próprios. Por exemplo, se um gay usa bracelete de couro no antebraço esquerdo, ele está se declarando como ativo no sexo; se a pulseira estiver no braço direito, significa que ele é passivo; se usar uma em cada antebraço, então ele é versátil.

A lista com variações de fetiches também é extensa. Há o Puppy Play (ou Dog Play) , caracterização do parceiro submisso como um animal de estimação; o Fist-Fucking (ou simplemente Fisting), introdução da mão e/ou do braço no ânus ou na vagina como forma de masturbação; o Pissing, excitação pela urina; e o Scat, que repete o último ato, com a inclusão de fezes e vômito.

Turistas exibem trajes militares pelas ruas de Berlim em meio ao clima do fOlsom Europe (Foto: Hal Paes | Revista Híbrida)

No Folsom, todos esses fetiches não só encontram seus espaços, como também são vivenciados publicamente. Há até bandeiras para identificar os adeptos de diferentes fetiches, como as dos Orgulhos Leather, BDSM e Puppy. E embora o festival concentre suas atividades nas ruas de Schonenberg, várias atividades acabam se espalhando por outros lugares de Berlim, incluindo festas, orgias, passeios de barco, palestras, debates, exposições de arte, apresentações musicais etc. Assim, o evento movimenta um enorme mercado, indo do turismo ao fetiche, e entendendo que o sexo também pode ser business ao oferecer fantasias e vivências como objetos de consumo.

No que diz respeito ao vestiário, existe ainda o Sports, tesão em roupas de esporte; o Military, que trata de roupas militares; o Rubber, com roupas de borracha frequentemente associadas à prática de pissing (mas não exclusivamente ligadas a ela); o Smoke, que é o tesão por charutos; o Wax, excitação com cera quente de velas sobre o corpo; e por aí vai.

No Folsom Europe, participante incorpora os fetiches leather e smoke, com máscara de couro e charuto (Foto: Hal Paes | Revista Híbrida)

Mas engana-se quem acha que tudo se resume a fetiches e consumo. O Folsom Europe também promove a arrecadação de fundos para movimentos pelo respeito à diversidade sexual e para outras ações ligadas à prevenção do HIV e de ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), entre outros, além de realizar eventos, palestras e workshops que visam promover discussões e reflexões sobre sexualidade e o exercício desta liberdade.

Festas, fetiches e música eletrônica

Ao longo dos cinco dias de festival, a principal atração do Folsom é a street fair, feira que acontece nas ruas com performances, shows e barracas vendendo utensílios e roupas para as mais variadas práticas sexuais. A diversidade segue noite adentro, com uma infinidade de festas, que acontecem simultaneamente em diferentes clubes e cruisings, os bares para pegação.

Cada um desses eventos visa atingir públicos diferentes, embora em todas existam performances de masculinidade e agressividade. Há festas para Skinheads, Leather, Fisting, Puppies, Barebackers (sexo sem camisinha), Bio-hazzard (para soropositivos) etc. As opções são muitas e vão além dos eventos que integram o calendário oficial do festival, com uma infinidade de cruisings, clubes, saunas e espaços que chegam a funcionar 24h por dia, o ano inteiro.

Flyer da festa Chalet, parte do Falsom Europe, promovendo o pissing (Foto: Reprodução)

Em praticamente todos esses clubes e boates, há um guarda-volumes na entrada, no qual é possível deixar suas roupas e seus pertences para seguir pela festa nu, ou de harness (uma espécie de arreio para prender o tórax) e jockstrap (cueca que deixa as nádegas à mostra), bastante comuns durante o festival. E embora seja possível andar pelas ruas de Berlim com com essas e outras vestimentas, a maioria das pessoas prefere se caracterizar apenas nos clubes e espaços mais reservados.

Participantes usando harnness pelas ruas de Berlim durante o Folsom Europe (Foto: Hal Paes | Revista Híbrida)

Neste ano, a festa de abertura oficial do Folsom aconteceu na lendária boate Kit Kat, famosa por suas festas de fetiche e pelos seus rigorosos dress codes. É comum que pessoas sejam barradas na porta do clube, se não estiverem vestidas de forma considerada adequada pelos organizadores do evento. Há até um guia de como se vestir para entrar lá, com uma simples regra geral: as vestimentas devem ser estranhas, bizarras, indecentes ou kink, referentes ao universo de algum fetiche sexual.

A gigantesca boate tem mais de três pistas de dança, piscina, sauna, bares, lounges com camas, slings (balanço/rede de couro para sexo), jaulas, correntes e muitos instrumentos para as mais diversas práticas sexuais. Em todos os ambientes, a música tocada é a eletrônica, e nos espaços interiores é estritamente proibido filmar ou fotografar – todos os celulares devem ser deixados na portaria.

Manual de dicas sobre como se vestir para conseguir entrar na Kit Kat, em Berlim (Foto; Reprodução)

A principal festa do Folsom é a PIG, que aconteceu num antigo prédio industrial, no centro de Berlim, com um som eletrônico pesado. O porão da fábrica, com máquinas e tubulações, se tornou um gigantesco dark room, no qual circulavam milhares de homens. Os compartimentos da fábrica foram transformados em território para sexo com os mais variados fetiches, incluindo uma área com mictórios especiais e banheiras adaptadas para o pissing, além de uma sala dedicada ao fist-fucking, na qual eram vendidos lubrificantes especiais e poppers, um tipo de lança-perfume que promove relaxamento e facilita a penetração anal.

O domingo foi dia da MENtabolism, festa de encerramento que rolou num antigo espaço industrial, com vários cômodos dedicados ao cruising, nos quais era possível encontrar tanto os poppers quanto Viagra. Esse foi o único evento de todo o festival que disponibilizou fotos oficiais, tiradas e divulgadas pela própria equipe (confira abaixo).

Participantes usam jock straps durante a MENtabolism, festa de encerramento do Folsom Europe (Foto: Divulgação)

Uma história de guerras e sexo

O caráter profundamente liberal da sociedade berlinense em relação à sexualidade e ao gênero é uma questão que já foi bastante estudada por historiadores, sociólogos, antropólogos e cientistas sociais em geral. Há um bom documentário a respeito, “Legendary Sin Cities – Berlin: Metropolis of Vice”, além de livros como “Voluptuous Panic: The Erotic World of Weimar Berlin”.

De um modo geral, os estudiosos destacam um conjunto de eventos históricos que sucederam Primeira Guerra Mundial, até a ascensão dos nazistas ao poder, como determinantes daquilo que pode ser chamado de “ethos” berlinense. Em 1920, durante a República de Weimar, Berlim vivia uma euforia democrática, um momento de afirmação de liberdades e uma profunda rejeição aos valores associados à religião e ao regime anterior.

Além disso, na mesma época foi fundado o primeiro Instituto de Estudos da Sexualidade (Institut für Sexualwissenschaft), pregando que esta deveria ser enxergada, estudada e compreendida sem julgamentos morais. A influência do Instituto e a popularidade vigente dos pensamentos de Sigmund Freud (1856 – 1939) e de Friedrich Nietzsche (1844 – 1900), combinadas com o momento político e econômico do país, lançava um olhar de tolerância e de liberdade sobre as variadas formas que gênero e sexualidade pudessem assumir. Vale também lembrar que, antes mesmo desse período, Berlim foi a primeira cidade a contar com um movimento que defendia direitos hoje entendidos como LGBTs, com grupos socialistas que inclusive pregavam o direito ao nudismo nas praças da capital.

A dançarina, atriz e prostituta Anita Berber, que melhor personificou o espírito libertino da Berlim de 1920, em performance de BDSM (Foto: Reprodução)

Antes ainda, no início do século XX, Berlim tornou-se a capital europeia da liberdade sexual. A prostituição era legalizada e regulamentada pelo Estado, que submetia prostitutas a exames médicos mensais. Drogas como cocaína, ópio e morfina eram liberadas e havia uma infinidade de clubes onde era possível realizar as fantasias sexuais dos alemães de então.

Claro, as liberdades sexuais sofreram uma grave ruptura com a eleição de Hitler e a ascensão do nazismo. O Instituto de Estudos da Sexualidade foi destruído, seus livros foram queimados e, consequentemente, considerados como exemplos de decadência moral. O próximo passo foi queimaram as pessoas. Gays, lésbicas, travestis e todos aqueles com comportamento considerado contrário aos valores pregados pelo Estado nazista estavam sujeitos à perseguição, à tortura e ao envio aos campos de concentração. Bares, clubes e espaços de liberdade sexual foram fechados. Neste sentido, é simbólico que Eldorado, o maior bar frequentado por gays, lésbicas e travestis, em Schonenberg, foi fechado e transformado em uma das sedes do partido nazista.

Fachada do bar Eldorado, em Schonenberg, ocupada pelo Partido Nazista (Foto: Reprodução)

Mesmo com o fim da Segunda Guerra e a queda dos nazistas, demorou um tempo até que as liberdades sexuais de Berlim fossem plenamente recuperadas até atingirem o ápice descrito acima. Tal processo só começou de fatoapós a reunificação da Alemanha e, especialmente, após o Estado Alemão reconhecer em 1990 que minorias sexuais também foram vítimas do nazismo.

Hoje, o Estado Alemão mantém viva sua memória e tem políticas para preservar as liberdades de minorias sexuais. Esse talvez seja um dos maiores alertas da história sobre o risco de que mesmo sociedades extremamente liberais e democráticas podem sucumbir, ainda que pelo caminho das eleições, ao obscurantismo fascista e autoritário.

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