Vídeos sobre o exército da Tailândia têm viralizado em redes sociais como o TikTok e o X (Twitter) nas últimas semanas. Num deles, um sujeito trajando o fardamento desfila com um filtro de borboleta; noutro, um homem carregando uma bolsa estilo baguete participa do sorteio característico do alistamento militar no país asiático.
Os comentários, é claro, são munidos de bom humor. “Eles literalmente servem”, diz um dos internautas. No entanto, a realidade por trás da relação entre o Exército tailandês e a comunidade LGBTQIA+ não é exatamente lá muito animadora.
Viciado em todo e qualquer conteúdo sobre o exército tailandês pic.twitter.com/tnRHBLAIle
— Quizy (@esquizopoc) April 12, 2024
A presença de homens cisgênero assumidamente gays no Exército tailandês é relativamente nova. Foi somente a partir de 2005, quando a homossexualidade deixou de ser considerada uma doença mental no país, que o alistamento se tornou obrigatório para jovens acima de 21 anos que pertençam abertamente a esse grupo.
Infelizmente, não tem como escapar: aqueles que não se apresentarem como voluntários, devem tentar a sorte através de um sorteio, onde o papel preto significa a dispensa, enquanto o vermelho indica que deverão receber o treinamento.
Os virais mostram jovens desmaiando ou vibrando após descobrirem seu destino. Por aqui, a reação tem sido cômica, mas por lá, nem a mais amistosa forma de obrigar jovens a se alistarem mascara o que alguns já sofreram dentro do Alto Comando.
Ai gente to passando mal que na Tailândia eles fazem os meninos tirar na urna se vão servir no exército ou não KKKKKKKKKKKKK pic.twitter.com/jMfR5YFUOm
— rodrigo (@readrigo) April 7, 2024
Humilhação e tortura no Exército da Tailândia
De acordo com dados publicados pela Anistia Internacional em 2020, os jovens que se alistam no Exército tailandês, em especial os que se identificam como parte da comunidade LGBTQIA+, são submetidos a situações deploráveis por parte de seus superiores ao adentrarem a carreira militar.
“Recrutas descreveram como sargentos e treinadores os agrediram brutalmente com os bastões e pontas das armas, os abusaram sexualmente e os forçaram a se exercitar até que desmaiassem”, disse Clare Algar, diretora da organização.
Para o relatório, foram entrevistados 26 soldados, comandantes e oficiais. As práticas de assédio foram descritas por boa parte dos participantes como um “segredo aberto” dentro da sociedade tailandesa.
“Esses jovens recrutas são expostos a seus superiores, que os castigam com abuso sexual, incluindo estupro e outras formas de tortura. Esses são crimes sérios sob a legislação da Tailândia e do Direito Internacional e aqueles responsáveis deveriam enfrentar a justiça”, ressalta Algar.
À época da divulgação da pesquisa, o Major Chalermchai Sri-saiyud, subchefe de gabinete da Aeronáutica, chegou a negar as alegações de assédio, dizendo que o Exército trata os novos integrantes como membros da família.
A boa notícia é que a maré tem chances de virar: mesmo que o sorteio siga sendo defendido pelos oficiais militares, discussões em torno da utilidade do processo tem ganhando cada vez mais espaço. Em 2023, o Ministro da Defesa tailandês chegou a anunciar que o alistamento obrigatório seria gradualmente extinto, dando espaço para somente um sistema voluntário.
Discussão semelhante tem ocorrido no Brasil a partir do Projeto de Lei 6/23. Proposto pelo deputado Weliton Prado (Solidariedade-MG), o texto visa tornar facultativo o alistamento para pessoas de 18 a 45 anos, “exceto caso ocorra uma convocação geral expedida pelo Poder Executivo e devidamente fundamentada”.
No momento, o PL aguarda o parecer do relator na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CREDN).
Histórico LGBTQIA+ na Tailândia
Recheada de contradições, a Tailândia tem servido de modelo na Ásia por ser considerado um dos locais mais tolerantes daquele continente em relação às pessoas LGBTQIA+. A boa receptividade chega a ser promovida pelo próprio setor turístico do país, que anuncia o destino como um “refúgio” para a comunidade na região.
O cenário político também tem refletido isso a certo nível. Em 2012, Yollanda “Nok” Suanyot, mulher transsexual, ativista e presidente da Associação Transfeminina da Tailândia, foi eleita para ocupar uma cadeira no conselho da província de Nan, cidade localizada ao norte do país.
Quase nove anos depois, Paramee “Juang” Waichongcharoen, também mulher trans, foi eleita para a Câmara defendendo o direito à inclusividade. Atualmente, ela coordena as políticas de educação do país.
A conquista mais significativa ocorreu em março deste ano, quando o Parlamento tailandês aprovou um projeto de lei que permite o casamento entre pessoas do mesmo gênero. A decisão histórica obteve 400 votos favoráveis (de 415) e agora tramita para o Senado.
Para muitos historiadores, a hospitalidade tailandesa advém do fato de o país nunca ter sido colonizado. A fluidez de gênero, inclusive, é marca de sua história, com relatos de relacionamentos LGBTQIA+ durante o período Ayutthaya (1351 – 1767).
Porém, com a emergência da Era Vitoriana a partir do século XIX, a Tailândia começou a sofrer influência dos padrões ocidentais, fundamentados no binarismo. De acordo com o especialista em assuntos de gênero e sexualidade Peter A. Jackson, fonte no relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento de 2014, isso aconteceu para que eles se mostrassem como “avançados”, na expectativa de tentar impedir a chance de serem invadidos.
As consequências desse período estão presentes até hoje: embora a comunidade LGBTQIA+ seja tolerada, seus direitos, assim como no Ocidente, não estão 100% assegurados. Pessoas trans, por exemplo, não podem alterar suas documentações após a readequação de gênero e a adoção por casais homoafetivos ainda é considerada uma prática ilegal no país.