(*com Renan Dutra)
Quando Lady Gaga abriu seu segundo disco de inéditas dizendo que preferia amar a noite ao abandonar a vida, seus fãs sentiram que a popstar estava mandando uma mensagem pessoal, individual e cuidadosamente curada para eles, mesmo que fossem milhões ao redor do mundo. Com uma das melhores, maiores e mais marcantes “era” pop da última década, a artista usou Born This Way, que completa 10 anos neste domingo (23), para elevar o nível de conexão com seus “monstrinhos” através da celebração de suas diferenças e dores, em um baile queer, político e escandaloso.
“Born This Way”, o single, serviu como porta de entrada para o universo do disco ao introduzir “uma nova raça sem preconceitos”, como ela descreve no clipe, e apelando especificamente para a sua base de fãs, sem a menor cerimônia. Antes mesma de ser lançada, a música foi descrita por Elton John como “o hino que vai se sobrepor a ‘I Will Survive’“, e o público finalmente entendeu o que ele queria dizer quando um refrão que praticamente soletrava a sigla LGBT começou a tocar nas rádios.
As três palavras que definiriam os próximos anos de Gaga foram ditas pela primeira vez no palco da MTV. Foram meses e meses de prévias cuidadosamente escolhidas até o lançamento e, apesar das inegáveis comparações com “Express Yourself” da Madonna, parecia surreal ouvir uma letra tão explicitamente gay tocando na rádio.
“Não importa se você ama ele ou E-L-E, em letras maiúsculas. Apenas levante suas patas, porque você nasceu assim, querido”, começa Lady Gaga, antes de um sintetizador poderoso entrar te obrigado a levantar. “Don’t be a drag, just be a queen” (“Não seja um lixo, seja apenas uma rainha”), um trocadilho esperto e meio cafona, é enunciado como um mergulho na cultura queer para os desavisados. “Regozije-se e se ame hoje, porque querido você nasceu assim” era como uma mãe dizendo aos filhos que está tudo bem não se encaixar nos moldes – ser gay podia até parecer com o fim do mundo, mas não era.
Para aqueles LGBTIs que não pertenciam a uma comunidade, cena ou “família tradicional” com quem contar, “Born This Way” foi a realização do pedido sufocado de um abraço e de apoio. Foi o que a gente, enquanto comunidade diversa em sexualidade e gênero, queria e precisava escutar para nos assegurar que nossa vida não era um desperdício, pecado ou erro. “Eu nasci assim” era uma mensagem curta e simples, que precisava ser dita e ouvida, ontem e hoje. Herança genética ou não, Gaga deixou as dúvidas sobre a origem das “sexualidades desviantes” para os teóricos e assegurou que a aceitação era o único caminho possível.
O nascimento de uma era
O primeiro teaser que os fãs tiveram da “era” Born This Way foi durante o MTV Video Music Awards de 2010, que veio a se tornar um divisor de águas para Gaga, tanto na carreira, quanto na sua percepção pelo público. O fato de artista ter sido a mais laureada da noite, com oito prêmios, ficou em segundo plano quando ela subiu ao palco no hoje histórico e ainda nojento vestido de carne, assinado pelo designer Franc Fernandez.
O conjuntinho, com calçados, bolsa e chapéu, se tornou um ícone da cultura pop quase instantaneamente, e que todo o episódio tenha acontecido na presença de Cher deixa o momento ainda mais inesquecível. Mas no fuzuê que se seguiu ao vestido (era de verdade? fedia? ela tava de meia?) sua real mensagem passou batida. Como ela mesma frisa até hoje: “Foi um manifesto político contra o Don’t Ask Don’t Tell, eu não queria só usar carne porque é divertido”.
Gaga chegou ao VMA daquele acompanhada por quatro soldados dispensados do serviço militar dos Estados Unidos e pedindo à imprensa que ouvisse ouvissem suas histórias. Todos os seus convidados foram expulsos das forças armadas pelo fato de serem abertamente gays, algo imposto pela política do “Don’t ask, don’t tell” (“não pergunte, não conte”) que ainda vigorava. Implementado em 1994 pelo governo de Bill Clinton, o conjunto de normas foi criado para punir soldados homossexuais que escolhiam não esconder sua sexualidade.
Na primeira década dos anos 2000, a medida teve várias tentativas de ser revogada por grupos de direitos LGBTI+, mas ela só seria abolida de fato em setembro de 2011. Um ano antes, na semana seguinte ao VMA, Gaga discursou em Portland, no estado de Oregon, durante um protesto público que reivindicava a revogação da Don’t Ask, Don’t Tell. Ali, ela afirmou que a igualdade era “o corte de carne mais nobre dos Estados Unidos”, e questionou o porquê de nem todos poderem aproveitar da mesma fatia.
“Como diz a base dessa lei, soldados abertamente gays afetam toda a unidade de serviço, como se não tivesse problema discriminar ou dispensar soldados gays porque somos homofóbicos, estamos incomodados e não concordamos com a homossexualidade, e ‘eu não consigo me concentrar em campo quando estou em batalha'”, disse Gaga no palco da manifestação. “Não parece que a lei está ao contrário? Que, com base na Constituição dos Estados Unidos, estamos penalizando o soldado errado? […] Eu estou aqui hoje para propor uma nova lei, que expulsa o soldado com o problema. A lei ‘se você não gosta, vai embora’.”
Sua aliança ao movimento LGBTI+ já tinha rendido outros momentos memoráveis antes mesmo de o tema ser motes na divulgação de Born This Way, quando um ano antes ela marchou ao lado de milhares de ativistas no Capitólio, em Washington, exatamente para protestar contra o assassinato de Matthew Shepard, soldado espancado até a morte em 1998, durante a National Equality March. Naquele mesmo ato, Gaga cobrou aos quatro ventos promessa de campanha feita pelo então recém-eleito Barack Obama sobre a aprovação do casamento homoafetivo nos Estados Unidos: “Obama, eu sei que você está ouvindo. VOCÊ ESTÁ OUVINDO???”.
Alinhando o discurso à performance, Gaga seguiu como uma importante aliada da comunidade LGBTI+ ao longo dos anos, mantendo seu ativismo intrínseco à sua obra e, mais ainda, deixando um legado intocável na aliança entre visibilidade, representatividade e música. O disco que viria a seguir era apenas o primeiro passo.
Em entrevista à Vanity Fair, ela foi questionada sobre qual sua principal preocupação política. “Eu me importo com o casamento gay. Me importo muito sobre imigração. Me immporto com a educação”, disse. “Me importo com famílias e o que é ensinado nas escolas e o que é ensinado em casa. E me sinto liberada pela minha habilidade de ser política sem nenhuma afiliação política.” Todos os temas, de uma forma ou de outra, estão na mensagem escrita em letras garrafais ao longo de mais de uma hora em Born This Way.
O disco
“Marry The Night”, apesar de abrir o álbum com um convite para uma noite inesquecível e irrecuperável, foi o último single do disco, mas é peça central para entender de onde veio o interesse e aliança de Lady Gaga à comunidade LGBTI+. Dirigido pela própria artista, o clipe marcou sua estreia por trás das câmeras com uma produção de quase 14 minutos – sua mais longa até hoje – que revivia “o pior dia” da sua vida.
Ainda nesta última semana, a artista juntou as peças desse quebra-cabeça e revelou pela primeira vez que, aos 19 anos, foi vítima de abuso sexual e, após o crime, largada grávida numa esquina de rua e posteriormente internada em uma clínica feminina. Se rebobinarmos a fita 10 anos, a história estava ali, no clipe de “Marry The Night”.
Enquanto reescrevia sua história de forma glamurosa para que a internação não parecesse tão banal e traumática, as enfermeiras usavam a próxima coleção da Calvin Klein (assim como ela), com sapatos customizados por Giuseppe Zenotti. Veja, não é que ela fosse desonesta, mas apenas que ela odiava a realidade. Essa sessão de terapia glamurizada segue em todo o disco, se alternando entre as desilusões dos fãs e da própria artista com fama, romance e família.
“Bad Kids”, por exemplo, é quase uma continuação da música que dá nome ao disco e foi escrita com base em cartas que a artista recebia dos fãs, versando sobre crianças desajustadas e hostilizadas em lares disfuncionais. Essas preocupação são espalhadas por toda a tracklist, como em “Americano”, epopeia sobre um casal gay de imigrantes que se apaixonam, “mas não no tribunal”.
A princípio uma das poucas baladas do disco (e mantida assim ao vivo), “Hair” é uma colaboração com o produtor RedOne que explode em batidas eletrônicas sobre a infância de Gaga e a vontade de expressar seu gênero e sua veia artística através de roupas e penteados mirabolantes. A forma como essa narrativa é construída poderia muito bem se aplicar à luta de pessoas trans pela mesmo reconhecimento, e o verso “Eu só quero ser eu mesma e quero que você me ame por quem eu sou” não está tão distante da marcha por liberdade que ela canta na recente “Free Woman”, especificamente escrita com a população T em mente.
O clipe de “Born This Way”, digno de uma análise à parte depois dessa década decorrida, traz referências de Michael Jackson e, novamente, Madonna. Dirigido por Nick Knight, ele começa com uma “mitose do futuro”, “o início de uma nova raça, sem preconceito e sem julgamento, com liberdade sem fronteiras”.
Logo na introdução do vídeo, Gaga se questiona como proteger a nova raça que ela literalmente pariu “sem usar a violência”? Com próteses faciais, ela se colocou no devido lugar de “mãe monstra” e, apoiada por modelos considerados “bizarros” à época (RIP Zombie Boy), deu início a não apenas uma nova era musical na sua carreira, mas no cenário e horizonte pop, que desde então tenta replicar seu engajamento político sem realmente soar tão sincero ou orgânico como Born This Way.
Claro, haviam também as “farofas” e hits baseados no sucesso que a obra da própria Gaga já tinha rendido. Mas mesmo quando se entregava às rádios e pistas de dança em Born This Way, ela estava subvertendo qualquer que fosse o conceito no qual investia. “Government Hooker” poderia ser uma homenagem/incorporação de Marilyn Monroe e um reconhecimento póstumo da suposta amante de John F. Kennedy. “Judas”, como o próprio nome já sugere, é sobre amar, perdoar e sofrer pelo homem errado.
Enquanto suas contemporâneas como Katy Perry, Kesha e Rihanna criavam escapismo cantando sobre amores adolescentes, dançar até morrer ou se apaixonar em lugares sem esperança com diamantes no céu, a persona criada por Stefani Germanotta estava cutucando feridas dela, dos fãs e dos Estados Unidos.
Desde sua gestação, a “era” Born This Way cumpriu o papel de um dos maiores e bem-sucedidos ciclos de divulgação para uma popstar até então – construindo ao longo do caminho um mundo novo para a própria música pop, através de ovos gigantes, vestidos de carne e chifres de silicone. Um universo que renderia à sua criadora a aclamação da crítica e o sucesso comercial, permanecendo por seis semanas como o disco mais vendido dos Estados Unidos – seu primeiro a alcançar essa posição e outras duas indicações ao Grammy.
Não bastasse as músicas e discursos, ela também lançou à época do disco a Born This Way Foundation, uma organização sem fins lucrativos liderada por sua mãe, Cynthia Germanotta, cujo primeiro ato foi rodar os EUA com um ônibus itinerante para atender jovens e adolescentes vítimas de bullying. A fundação existe até hoje e, inclusive, tem recebido doações em homenagem aos 10 anos do disco para continuar “o movimento em prol da saúde mental jovem” e construir “um mundo mais bondoso e corajoso, que celebre todos por quem são”.
Talvez, naquela época, Gaga tenha sido interpretada como mais uma artista bizarra que tentava capturar a atenção do público através do choque, surpresa, curiosidade e desconforto que causava com suas performances e figurinos. Mas hoje, a promessa de “uma nova raça” de seres humanos sem preconceitos ou “fobias” parece até sensata quando lemos o noticiário e vemos o tipo de discurso continua imperando em todos os cantos do mundo, inclusive aqui no Brasil.
Afinal, a mesma Lady Gaga que há 10 anos gritava em Washington para ser ouvida, voltou à capital política dos Estados Unidos em 2021 para cantar o hino nacional durante a posse do primeiro presidente que prometeu lutar especificamente pelos direitos de transexuais durante seu mandato.