Revista Híbrida
Música

A sede pelo pink money já foi longe demais

Na noite desta segunda-feira (9), Nego do Borel lançou o clipe para o single “Me Solta” e, em questão de minutos, tornou-se alvo de críticas online tanto de conservadores quanto da comunidade LGBT+. O motivo? No vídeo, produzido em parceria com o pessoal do Kondzilla, Nego, homem heterossexual e cisgênero, aparece encarnando “Nega da Borelli”, uma personagem que ele afirma ter inventado há anos e reproduzido em inúmeros lugares/programas ao longo da carreira.

“O clipe é exatamente um reflexo da favela, ela tem uma diversidade enorme”, comentou Nego em entrevista ao Extra, afirmando saber de antemão que o vídeo causaria “polêmica”. Claro, na mesma hora em que atingiu a esfera online, Nego foi acusado de querer se apropriar do pink money e lucrar em cima da comunidade LGBT. Mas ele não está sozinho nessa exploração.

Antes de mais nada, é preciso entender que o fenômeno do “pink money” foi descoberto no final da última década por economistas, quando perceberam que o público gay masculino tinha um grande potencial de compra e significava lucro para empresas do setor de luxo, hotelaria, turismo etc, gastando até 30% mais do que heterossexuais. O nicho foi visto como a galinha dos ovos de ouro para empresários, que aos poucos começaram a investir em produtos voltados diretamente para esse mercado.

E aqui está o primeiro e principal problema com empresas que miram no pink money. É muito fácil levantar a bandeira da diversidade quando se mira uma crescente nos lucros e nas vendas. O difícil mesmo é querer ajudar de fato a comunidade LGBT a diminuir seus índices de violência, assassinatos, abandono familiar, depressão, suicídio etc. Não teve prova maior disso do que o último junho, Mês Internacional do Orgulho LGBT, com sua infinidade de marcas que lançaram coleções e campanhas voltadas para a comunidade, vendendo produtos repletos de arco-íris, unicórnios e frases de efeito.

Agora, quantas delas tiveram a preocupação e o cuidado de redirecionaram pelo menos R$1 de seus lucros para instituições que ajudem pessoas LGBTs em situação de risco? Quantas delas pregam essa mesma diversidade de fachada das suas campanhas publicitárias no seu quadro de funcionários?

E então chegamos à indústria cultural, mais especificamente ao mercado fonográfico brasileiro. Claro, a comunidade LGBT sempre teve seus ícones musicais heterossexuais e brancos, desde que Madonna fagocitou o voguing no seu catálogo e deu início à linhagem de divas que segue até artistas mais recentes como Ariana Grande e Demi Lovato, cuja base de fãs também é majoritariamente formada por gays. Mas há um grande abismo entre essas divas que acabam se tornando aliadas à causa de forma orgânica e aos produtos mercadológicos que se apropriam de uma bandeira apenas quando lhes é conveniente.

Pabllo Vittar talvez tenha sido o grande colírio para os olhos de gravadoras, marqueteiros e assessores de plantão. Pela primeira vez, uma drag queen conseguia furar a barreira da comunidade LGBT e se tornar uma estrela pop de sucesso hegemônico entre quase todos os seguimentos do Brasil, atravessando as fronteiras de gênero, idade, localização, poder aquisitivo e orientação sexual com seu domínio de rádios, canais de TV e sua onipresença online. Questões como representatividade e visibilidade viraram slogans baratos e clichês.

Pabllo Vittar durante a última Parada do Orgulho LGBTI do Rio de Janeiro (Foto: Cristiano Reckziegel | Híbrida)
Pabllo Vittar durante a última Parada do Orgulho LGBTI do Rio de Janeiro (Foto: Cristiano Reckziegel | Híbrida)

Percebeu-se então que o público LGBT podia ajudar na promoção de artistas e que estávamos na vanguarda de tudo o que fazia sucesso online, do vocabulário às imagens, das visualizações no Youtube aos streams no Spotify. E aí começou a surgir o efeito inverso, com artistas heterossexuais desejando mais e mais uma aliança com esse nicho que, bem ou mal, lhes serve como veículo orgânico de divulgação e lhes atribui um status fajuto de “descolados” ou “por dentro” do que está acontecendo de novo.

Não nos faltam exemplos recentes de cantoras e cantores que começaram a se promover como “iscas” para esse público. Na gringa, nomes como Nick Jonas e James Franco estão sempre mais do que dispostos a falar abertamente sobre a possibilidade de se relacionarem com pessoas do mesmo sexo, mesmo que nunca tenham chegado às vias de fato (pelo menos não publicamente).

Por aqui, Claudia “Lacriane” Leitte, a mesma que já declarou preferir um filho “macho” ao invés de um filho gay, fez questão de se apropriar do nosso vocabulário (de forma bem forçada, diga-se de passagem) para tentar fazer as pazes com o público e se autopromover em cima de dialetos e expressões que não lhe dizem respeito.

(Reprodução Twitter)

Recentemente, tivemos também o caso de Jojo Toddynho, que surgiu com a música “Que tiro foi esse?”, uma expressão disseminada em grupos LGBTs online e que, quando apropriada por ela, já estava beirando a saturação. O clipe que acompanhou a música mostrou um cara se divertindo em uma boate gay e dando pinta pra tudo quanto é lado.

Nada errado até aí, não fosse o comentário de Jojo para um hater no Instagram, no qual ela disse que ele tinha “cara de baitola”. Claro, a ofensa pode parecer simples e até infantil em certo grau, mas não deixa de evidenciar um pensamento estruturalmente homofóbico. Por que ela não se incomodou com a “cara de baitola” dos gays que lhe deram visualizações no Youtube e apareceram no seu clipe?

Seu próximo single, diga-se de passagem, chama-se “Arrasou, viado”, uma composição de Anitta e DJ Batata, que ganhará um clipe “cheio de representatividade”, como ela mesma frisa, com várias celebridades LGBTs e Jojo usand um maiô com a bandeira do arco-íris. O que nos traz de volta ao caso de Nego do Borel.

Jojo Toddynho nas gravações de “Arrasou Viado” (Foto: Divulgação)

Não há problema nenhum em artistas heterossexuais demonstrarem apoio à causa LGBT. Mas o que cabe a nós, enquanto comunidade, é avaliar cuidadosamente os momentos e as formas em que esse apoio é demonstrado, para não nos tornamos alvos mais fáceis do que já estamos sendo, servindo de degrau para impulsionar a carreira de quem não está preocupado com o lado menos “bonito” e “alegre” da comunidade.

Se o objetivo de Nego do Borel fosse mesmo mostrar a “diversidade” da favela, como Anitta conseguiu fazer tão bem no clipe de “Vai Malandra”, repleto de figurantes trans, gays e andróginos, é estranho o fato de que ele é a única personagem de “Me Solta” a se vestir e se portar daquela forma. Isso como se não bastasse sua relação de apoio à figura esdrúxula e homofóbica de Jair Bolsonaro. Mas não basta criticar Nego por essa escolha – ou pela falta dela, já que só há ele de “representante” da comunidade LGBT no vídeo.

Nego do Borel com Flavio e Jair Bolsonaro (Foto: Reprodução Instagram)

Afinal, assim como nós, ele se tornou mais uma ferramente na grande engrenagem da indústria cultural. Por mais que tenha declarado ser o grande autor por trás da ideia de beijar um homem em frente às câmeras, é difícil acreditar que não exista um time de marketing por trás desse clipe – cuja cinegrafia e a própria música não deixam de ser excelentes -, dizendo que mirar nos LGBTs é a nova tendência do mercado.

Mas que fique a lição. Foi preciso muito esforço e luta para que programas humorísticos parassem de usar como recurso cômico e preguiçoso a figura da “bichinha” que envergonha o pai ou do gay afeminado que é fissurado em cuecas de couro. E isso não aconteceu do dia para a noite. Travestis, transexuais e bichas pretas são até hoje vistas como “barraqueiras”, promíscuas e reativas, negadas de uma aceitação social que lhes priva tanto de direitos básicos à saúde, à segurança e à educação como de oportunidades no mercado de trabalho formal, aprisionadas em um estereótipo alheio é reforçado ainda mais com produtos como o clipe de “Me Solta”.

A comunidade LGBT no Brasil não está precisando dessa representatividade oportunista da mídia. O que precisamos é que parem de nos matar. E esse problema não vai ser resolvido nem tão cedo, se continuarmos permitindo que usem a figura de gays afeminadas como piada. Que a partir de agora prestemos mais atenção nas bichas pretas cantadas por gente como Linn da Quebrada do que na estereotipação de Negas das Borellis. Porque a contagem de corpos LGBTs no chão desse país continua a crescer na mesma proporção que as visualizações de “Me solta”.

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