Híbrida
MÚSICA

Clarice Falcão sobre truques, a poética dos banheiros químicos e músicas de bad

Em Truque, quarto e mais recente álbum de Clarice Falcão lançado em agosto, a carioca mistura todos os elementos presentes em seus trabalhos anteriores, mas de uma forma que encontra coesão e maturidade em um cenário de baladas noturnas com banheiros químicos poéticos com chão forrado por ziplocks. “Fui sentindo que esse é o disco que mais me representava como um todo”, diz a artista durante uma chamada de vídeo com a Híbrida.

O disco vem ao mesmo tempo em que Clarice celebra a primeira década da sua carreira. Nas músicas, ela narra inquietações, ilusões e desilusões engraçadas, constrangedoras e por vezes igualmente davastadoras, enquanto a produção passeia por vertentes da eletrônica mesclada à música brasileira.

Repetindo a parceria com Lucas de Paiva, que também produziu o antecessor, Tem Conserto (2019), Clarice aparece na foto de capa do disco caracterizada em uma espécie de referência a Leona Vingativa e Marta Golpista. Mas o universo visual de Truque é expandido para muito além disso, com os 12 clipes que acompanham o trabalho e tornam este seu primeiro álbum visual.

“Acho que explorei várias facetas durante os dez anos da minha carreira (me datando muito), e sinto que esse é o (trabalho) mais completo, como se todos esses lados meus estivessem convivendo em harmonia”, explica Clarice.

Todas essas Clarices românticas, irônicas, deprimidas e festeiras aparecem em Truque à medida em que ela chora na boate, encontra um mar de ziplocks no chão do banheiro químico, inventa outras dimensões, faz declarações de amor e leldade e termina tendo uma crise existencial. Nada muito atípico para quem já desejou ser uma CDJ.

Filha da escritora Adriana Falcão e do diretor João Falcão, Clarice comenta como a chegada dos 30 anos e o diagnóstico de bipolaridade influenciaram um novo estilo de vida e, claro, sua arte. Enquanto termina os últimos preparos da turnê de Truque, a artista fala sobre sua saúde mental, os traumas da família, por que gosta de fazer “músicas de bad” e as vezes que chorou na boate por alguns desencontro amoroso com a mesma franqueza e bom humor autodepreciativo que se declara podre em sua música ou responde fãs (ou haters?) no Twitter/X. Veja na entrevista abaixo.

HÍBRIDA: Pra começar: você tá metida com clubber? Eu entendi o Truque como uma continuação do Tem Conserto, que também era meio ambientado nesse universo das baladas. Qual foi o ponto de partida pro disco?

CLARICE FALCÃO: Cara, eu acho que ele tem um pouco dos três discos anteriores, sabe? Produzi junto com o Lucas de Paiva, que também produziu do Tem Conserto. De certa forma, você tem toda razão, porque sinto que eu e ele fizemos o Tem Conserto se conhecendo ainda. E a gente ficou muito próximo, muito amigo e muito brother, inclusive de ir em festa e balada, então o Truque é como se a gente tivesse azeitado a parceria, sabe? A gente tinha dois universos de música que já tínhamos trabalho e eram muito distintos no Tem Conserto. E o Truque é como se a gente tivesse virado um universo só.

Mas a gente quis brincar bastante. O disco fala de amor, que é um tema bem Monomania; também brincamos um pouco com arranjos de cordas, que não tem tanto no Tem Conserto, mas são todas eletrônicas. Então é, de certa forma, um truque. Você escuta uma orquestra, mas tem alguma coisa de esquisito e aí entende que não é de verdade. A única música que foi feita com os instrumentos mesmo é “Quero Acreditar”, que é sobre religião e propositalmente quisemos colocar os metais e backing vocals de outras pessoas.

H: Por que você quis fazer desse disco um álbum visual?

CF: Cara, tem alguns motivos. Fui sentindo que esse é o disco que mais me representava como um todo. Acho que explorei várias facetas durante os dez anos da minha carreira (me datando muito), e sinto que esse é o mais completo, como se todos esses lados meus estivessem convivendo em harmonia. Ainda mais quando a gente chega aos 30 anos.

H: Já ia falar que isso tem cara de uma onda 30+…

CF: Exatamente… A gente chega aos 30 anos e começa a se conhecer melhor, a aceitar os nossos lados – e eles começam a conviver em harmonia. Então eu queria que esse disco fosse completo também no conceito: que ele permeasse as letras, com essa coisa da ilusão, desilusão e do amor como um truque de mágica; os arranjos, de ter elementos falsos onde você não sabe o que é verdade ou não; a identidade visual, que tem essa coisa do disfarce, da Marta Golpista e tal; e aí chegando nos vídeos, onde cada um deles é um truque, como se fossem Clarices de dimensões diferentes.

H: Nossa, e o clipe de “Truque” é incrível. O da faixa-título, no caso. Ele foi gravado com deep fake? Como você fez?

CF: O truque é esse, que eu decorei a faixa ao contrário. Fomos fazendo por trechos, não tive que cantar tudo direto, mas cantei tudo ao contrário.

H: O de “Podre” você repetiu a coreografia umas trocentas vezes, então, pelo que eu tô imaginando?

CF: Exatamente. Foi em plano-sequência, colocamos a câmera paradinha e fomos gravando uma Clarice, depois a outra, depois a outra, depois a outra… Já “Fundo do Poço” é um vídeo de chroma (key), que tem os desastres naturais acontecendo, vulcões e nananã. Mas queríamos que o disco fosse completo, tipo um 360 graus da Clarice.

H: Quanto tempo você levou do momento em que decidiu lançar um álbum visual e todos os clipes estarem prontos?

CF: Muitos e muitos meses. Porque a gente gravou muito rápido. É aquilo, eu sou independente, tirando dinheiro do bolso e aí você vê que não é uma megaprodução, porque eu que paguei. Mas a gente fez em três dias. Então pra isso acontecer, tem todo um trabalho de pré-produção bizarro, porque foram dez vídeos, e muita coisa de pós-produção.

“Fundo do Poço” e “Ideia Merda”, por exemplo, que têm um enorme trabalho de pós-produção, ficaram prontos depois do horário que eu disse que ia lançar. Atrasou porque ainda estava chegando! Eu marquei o lançamento no bar e eu tipo enrolando no Twitter: “Será que eu lanço, não lanço?”. A gente honrou o conceito até o final.

H: Achei engraçado você falar dos 30 anos, porque também tô passando por esse período e acho que é um momento em que tentamos definir o que fica daqui pra frente e o que pertence à inocência dos 20. Inclusive, senti isso no disco, sobre aceitar umas partes nossas que às vezes a gente não quer olhar, como em “Podre”. Essa experiência fez parte do seu processo de composição e produção, algo como “aquilo fica com a Clarice dos primeiros discos e isso eu vou levar para a minha carreira daqui pra frente”?

CF: Acho que sim. Acho que esse é um momento que a gente erra com mais consciência, sabe? Essa coisa de a gente se desiludir, se apaixonar… Eu sou muito a favor de se apaixonar e quebrar a cara. Mas na primeira paixão a gente não acha que vai quebrar a cara e vai muito na inocência. As nossas partes ruins e as nossas trouxices e também o quanto a gente faz o outro de truxa, o quanto a gente é escroto, a gente não para de fazer. Mas acho que fazemos com mais consciência. Tipo, “tá, vou me apaixonar, vou me foder aqui”.

H: “Tá na hora, né? Já recuperei da última, podemos começar de novo.”

CF: Exatamente. Por que também, qual é a graça de ficar se poupando? Parece que gasta. Não, coração não gasta assim não. Mas eu sinto sim, que é um momento que a gente começa a ter mais consciência e a escolher nossas falhas, nossos erros.

H: O disco começou com os singles “Chorar na Boate” e, depois, “Ar da Sua Graça”, que são meio badzinhas, apesar de a primeira ter um ritmo mais tuntz tuntz. Começar com a bad foi intencional ou foi algo só desse álbum?

CF: Eu estou começando a pensar na setlist do show e tal e, cara, prestando atenção eu só tenho música bad. Essa é a verdade. E não é uma coisa consciente. Vou ver que tá faltando uma musiquinha feliz no meio e não consigo achar. Não sei, acho que felicidade não tem tanta graça. É muito mais divertido você ver alguém sofrendo do que ver uma pessoa ótima. E combina muito mais com a minha forma de ver o mundo. O desafio é justamente achar beleza na vulnerabilidade mesmo, na desgraça.

H: E achar graça também, né, porque você sempre faz uma brincadeira sobre isso nas letras, no ritmo…

CF: Exatamente, porque parte da graça de fazer arte é construir essas camadas. Uma coisa que gosto muito é fazer uma música felicíssima sobre algo triste, como “Chorar na Boate” ou “Horizontalmente”, que é um house mega pra cima sobre não conseguir sair da cama de depressão. É muito gostoso como artista construir essas camadas de significado, de clima e surpreender. Você tira um pouco o tapete do público. Como espectadora, gosto de me sentir assim.

H: Inclusive, “Chorar na Boate” é literal? Você já chegou a chorar na boate?

CF: Várias vezes. Já chorei por tudo. Tanto de tristeza por ver alguém que eu tava a fim não me dar bola, ver ex com outra pessoa… Mas também já chorei de felicidade, de estar doidona e falar “olha esse momento”, abraçar todo mundo e sai uma lagriminha. Eu sinto que festa e noite, em geral, é um lugar que seu corpo está muito aberto.

H: Suscetível aos perigos da noite.

CF: Você está aberto a grandes emoções. E sendo uma pessoa chorona, é fácil chorar na boate.

H: Por sinal, o que você acha que mudou no comportamento das pessoas em festas e baladas depois da pandemia?

CF: Eu sinto que mudei. Fiquei um pouco mais seletiva de quantas vezes eu saio, pra onde eu vou, se vai valer a pena, se fico até o final… Durante a pandemia, o Tem Conserto fez muita parte do processo de me entender como bipolar. Então, comecei a me tratar para o que eu tinha, de fato. Eu achava que era uma pessoa com depressão e fui entendendo que não, que tinha picos de mania. Então isso também mudou aquela coisa de querer ficar pra sempre (na festa). Hoje em dia, eu fico quando tá valendo a pena. Quando a festa tá mais ou menos, eu vou pra casa ou às vezes nem saio. Mas eu era muito rata de festa.

H: Eu também passei por isso, de às vezes ouvir uma música que eu amo e pensar “nossa, mas ela tá tocando de novo às seis da manhã, com o sol nascendo e tudo de novo…”

CF: E aí quanto mais seletivo você é, melhor é porque fica mais raro. Quando você fica três meses sem ir numa festa, a festa se torna especial. Depois dos 30 e da pandemia, passando muito tempo em casa, acho que a nossa bateria social foi mudando.

H: Como foi esse processo de ser diagnosticada como bipolar? Imagino que tenha influenciado o seu trabalho também.

CF: Com certeza. Eu encaro o Tem Conserto como um disco sobre depressão e ansiedade, com essa dualidade de músicas muito pra baixo e outras pra cima, como “Só + 6”, que fala sobre emendar uma coisa na outra e não parar, e “Morrer Tanto” e “Horizontalmente”, que são sobre depressão. É tudo dentro desse conceito de eu ter me entendido como uma pessoa que é bipolar.

A minha família sempre falou muito sobre saúde mental. A minha mãe tem um livro, Queria ver você feliz (Editora Intrínseca, 2014), sobre a história do meu avô, que se matou, e da minha avó, que morreu de overdose e chegou a ir para o hospício. Essa é a história da minha família, então esse sempre foi um assunto muito falado desde que eu era criança. E mesmo assim eu passei até os 29 anos achando que eu tinha algo que eu não tinha.

Rapidinha com Clarice Falcão

H: Qual a pior coisa que você pode encontrar em um banheiro químico?

CF: Acho que o pior é coisa na parede que não deveria estar na parede. Tipo, na tampa da privada. É difícil, e olha que eu gosto de banheiro químico, acho poético. É o momento que você tem pra você ali na festa. Eu consigo enxergar uma poesia no banheiro químico.

H: Qual a melhor forma de curar uma ressaca podre?

CF: A melhor forma de curar uma ressaca podre é… bebendo outra. (Risos) Não, mentira. Acho que é dormindo. Às vezes eu acordo, ressaquíssima, e me recuso. Se eu insisto em acordar mal, é daí pra pior. Qualquer coisa com gás também dá uma organizada.

H: Como se prevenir de tomar um truque (se é que é possível)?

CF: Dando um truque antes. Se você realmente não quer tomar um truque, seja truqueira. Porque alguém vai tomar um truque. Eu geralmente sou a que tomo e já aceitei isso na minha vida.

H: Todo dia sai de casa um truqueiro e alguém que vai ser trucado.

CF: Exatamente. Se você não sabe quem é o truqueiro, talvez você seja o truqueiro.

H: Conte uma ideia merda que você já teve, mas na verdade não foi tão merda assim.

CF: O próprio Lucas de Paiva, eu chamei pra fazer meu disco, mas eu não conhecia. Ele era namorado de uma conhecida e eu achava ele um fofinho, vi tocando em festa e chamei pra fazer um disco comigo sem conhecer. Podia ter dado super errado, mas foi a melhor ideia que eu já tive.

H: Você canta em “Dizer Adeus” que compraria até um apê em SP. Você cogitaria realmente morar em São Paulo?

CF: Não, eu acho que definitivamente é isso, olha o nível que chegou, tô até cogitando mudar pra São Paulo. Essa inclusive é a única música que o Luquinha trouxe e depois a gente trabalhou junto, na letra etc., mas foi a primeira que ele compôs na vida.

H: Quais são os três lugares ou festas que têm a vibe do disco e você gostaria que as pessoas ouvissem?

CF: De festa, eu amo a Até as 4, aqui do Rio. Acho uma delicinha, tem personalidade, não é grande demais. Acho que vale ouvir vendo os clipes, tipo na ordenzinha com uma bebidinha.

H: Um clássico evento de “gays vendo clipes”.

CF: Gays vendo clipes! Eu adoraria. Acho que o melhor jeito seria gays se reunindo, botando no telão, bebendo um negocinho e vendo na ordem, comentando “olha, a make tá ruim, a peruca não tá direito”.

E no meu local favorito de ouvir música, que é em trajetos, tipo no ônibus. É muito gostoso pra uma viagem longa. Trajetos, em geral, eu recomendo ouvir música, e esse discozinho que tem uma ordem pensada também.

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