Híbrida
MÚSICA

Com “Agropoc”, Gabeu abre espaço no sertanejo para quem é LGBTI+

Gabeu incorpora a diversidade do sertanejo em "Agropoc" (Foto: Divulgação)

Gabeu incorpora a diversidade do sertanejo em "Agropoc" (Foto: Divulgação)

Um dos principais e mais interessantes movimentos no constante avanço de artistas LGBTI+ na música popular brasileira, o Queernejo acaba de ganhar um marco que tem tudo para se tornar um divisor de águas na consolidação do gênero pelo Brasil. Agropoc, o disco de estreia do cantor Gabeu, chegou às plataformas de streaming na primeira hora desta terça-feira, 10, com uma variedade de ritmos, influências e temáticas que mostram a amplitude de possibilidades nesse campo.

“Você vai curtir agora o som que vem do interior”, anuncia Gabeu na primeira faixa do disco, como um radialista fictício abrindo a programação diversa da Agropoc. Ao longo das nove músicas seguintes, o artista passeia por várias vertentes de um dos gêneros mais populares do País. “Sempre gostei desse universo, mas era como se não me coubesse ali”, conta em entrevista à Híbrida.

Nascido e criado em Franca, “interiorzão” de São Paulo onde o sertanejo é “muito forte”, Gabeu toma seu lugar como capitão desse movimento musical que abre um espaço há muito necessário para artistas LGBTI+ na música. Ppassando pela viola caipira aos sertanejos raiz e universitário, ele constrói um panorama progressista do ritmo, sem esquecer as raízes brasileiras e latinas do gênero. Já as letras são assumidamente agro e poc, falando sobre amores homoafetivos e rejeitando homens machistas ou ideais ultrapassados de masculinidade.

O Queernejo está no seu momento mais fértil, porque é o início, então não estamos presos a nada

Em 2018, quando lançou seu single de estreia Amor Rural”, seguido por Sugar Daddy” (que entrou na nossa lista de melhores daquele ano), o artista se surpreendeu com a resposta positiva ao trabalho e passou a amadurecer a ideia de um disco. “Em cada música, gostaria de fazer uma proposta diferente. E então comecei a ter vários insights, foi um momento de muita criatividade”, lembra.

“Fui me abastecendo de várias referências do sertanejo, desde o country até os ritmos latinos. Quando eu vi, entendi que cada música seria uma ideia diferente da outra. Já que estamos falando de diversidade também dos corpos LGBTQIA+, quis trazer isso na diversidade musical.”

Esse espaço não é estranho a Gabeu, que conta ter crescido indo a festas de peão, quermesses e quadrilhas para acompanhar os shows do pai, Solimões (da dupla com Rionegro). Consequentemente, o artista, hoje com 23 anos, começou a curtir os eventos, principalmente os parques e barracas de comida, mesmo que por vezes se sentisse deslocado naquele ambiente.

“Foi uma fase difícil pra mim. Senti que a minha sexualidade era anulada, porque enquanto meus amigos da escola estavam nesse momento de falar sobre ficar com meninas, eu não queria discutir isso”, lembra sobre o início da adolescência. Foi aos 14 anos, quando começou a ter aulas de teatro, que isso mudou: “Comecei a me questionar, a me entender e a ter contato com pessoas que estavam passando pelos mesmos processos. Nos fortalecemos muito nesse meio”.

Em Agropoc, Gabeu conta que deu asas à sua vontade de criar histórias e que as músicas não são necessariamente inspiradas nas suas próprias vivências. Com isso, há o country de “Bandoleiro e Atacante”, que conta as aventuras de um casal à la Bonnie e Clyde, inspirada em “Big Iron”, de Marty Robbins, e no clipe de “Addicted to You”, do Avicii. “Bailão” é um arrasta-pé influenciado pelas músicas dançantes do pai, enquanto “Esconde-Esconde”, com sua letra sobre homens “fora do meio”, traz uma sanfona acelerada e perfeita para as baladas de pop.

Produzido por Fabrício Almeida e com as participações de Bemti (na romântica “Bem Te Vi”) e Reddy Allor (em “Queda D’Água”), o álbum fecha com “Filho”, uma balada emocionante à viola, sobre as dores de um jovem LGBTI+ que não é aceito pelos pais. “Eu tinha o refrão na cabeça: ‘Se a porta da sala se fecha, o portão da vida quase não dá brecha’. Então, pensei que queria fazer uma carta aberta para pais de crianças LGBTI +. Pensando que, em 2018, a relação com meu pai viralizou pelo carinho que ele comenta nas minhas fotos, e refleti muito sobre quem não tem isso”, conta Gabeu.

No futuro próximo, ele adianta, já tem uma colaboração com Gali Galó planejada e uma sessão de versões acústicas do disco. Mas, até lá, você pode conferir o restante da entrevista abaixo:

HÍBRIDA: Como você definiria o Queernejo?

GABEU: É difícil até pra gente dizer o que ele é, porque é uma coisa muito nova que estamos discutindo enquando vamos fazendo. Acho que o Queernejo está no seu momento mais fértil, porque é o início, então não estamos presos a nada. Estamos abertos a qualquer tipo de mistura e narrativa. Ele não se resume a falar sobre ser LGBTQIA+ no sertanejo, vai além disso.

Existe um conceito estético e sonoro muito grandes, que não existe necessariamente no sertanejo tradicional. Ele bebe muito em fontes da cultura pop e do country. Arriscaria dizer que é uma mistura do sertanejo tradicional e suas raízes com coisas ousadas e exageradas. Disso, podemos ter muitos resultados diferentes e o Agropoc é um deles.

H: Você consegue imaginar suas músicas saindo da galera LGBTI+ e conquistando o público tradicional do sertanejo? Ou fazendo o caminho inverso, já que esse ritmo não é tão tocado em baladas LGBTI+?  

G: Ainda tenho dificuldades de imaginar minhas músicas sendo tocadas em ambientes tradicionais de sertanejo. Acho que meu público ainda é muito de cultura pop, está nas baladas pop, consume divas pop… E eu amo isso, porque também sou assim. Ao mesmo tempo, essa galera, assim como eu, acabou de alguma forma usando toda essa cultura pop como refúgio. Então, partimos daqui pro sertanejo e não o contrário. Não é direto para o Villa Mix. É um processo lento, mas tudo certo também.

H: Com a quantidade de artistas do Queernejo surgindo, já dá pra imaginar um festival do gênero em um futuro próximo.

G: Nós fizemos, o Fivela Vest. Na ausência de um festival que contemple as pessoas queer e caipiras, a gente faz. Foram cinco horas com vários artistas de sertanejo. Queremos fazer uma edição presencial porque acho que tem muito potencial para reunir gente. Tivemos mesas de debate para questionar e dialogar sobre mulheres nos bastidores, masculinidade tóxica, transgeneridade e negritudes no sertanejo.

H: “Bandoleiro e Atacante” traz muitos elementos do country, com a narrativa de uma história, como se estivesse construindo um filme. Esse lugar de narrador é fácil ou a composição vem mais natural quando você escreve sobre suas próprias experiências?

G: Ainda não tive essa experiência de escrever músicas que são literalmente sobre mim e minhas vivências. Eu nunca vivi de fato um amor no mato, escondido. Nunca tive um sugar daddy. Não sou um bandido que rouba bancos com meu namorado. (risos) É literalmente sobre a minha gana de criar e contar histórias.

[“Bandoleiro e Atacante”] foi a música mais complexa de escrever, porque não tem um refrão que se repete. Ela começa e termina de uma forma bem dramática. Foi bem intenso construir essa linha do tempo, tentar colocar na letra coisas que se transformassem em elementos visuais para quem está ouvindo, porque queria que o público tivesse a sensação de estar vendo um filme. Gosto muito de country, dessa estética faroeste e gang bang.

H: A representação de gays trambiqueiras também é importante (risos).

G: Exatamente!

H: A música que mais me deixou surpreso e achei bem tocante foi “Filho”. Acho que nenhum ser humano vai ser capaz de segurar o choro, ainda mais quando pensamos em todo o contexto de crianças LGBTI+ isoladas no interior. Como foi escrever essa?

G: É uma solidão muito grande, realmente. E não é uma música inspirada na minha relação com meus pais. Inclusive, acho que as pessoas vão pensar muito que é isso, mas tudo bem, porque quero falar sobre [esse assunto].

Tive uma inspiração direta num ex-namorado, que foi uma relação muito conturbada porque os pais não aceitavam ele. Tivemos uma relação muito “Amor Rural”, não literalmente, mas muito escondida… (Risos) Foi nosso primeiro namoro, éramos duas pessoas imaturas e não sabíamos lidar com essa pressão que estava rolando. Até o momento que ficou insustentável e cada um foi pro seu lado. Eu tive a sensação, na época, de que queria pegar os pais dele e falar “Pelo amor de deus, olha pro seu filho e como ele precisa de vocês!”. Dessa vontade de gritar, surgiu “Filho”.

Acho que muitas pessoas podem se identificar [com ela] e pode bater de divrsas formas. Pode ser meio cicatrizante e algo que conforta, mas também corre o risco de doer mesmo, e sinto muito. Mas é uma intenção muito positiva.

H: Qual foi o feedback do seu pai sobre o disco, considerando que ele é um dos maiores ícones do sertanejo?

G: Ele ouviu e tem as faixas preferidas dele, principalmente “Bailão”, que ele acha a música forte do disco. Mas nesse processo criativo, desde a composição à finalização, eu sou bem introspectivo. Para compor e ter as ideias, fico muito na minha até mostrar pra alguém e, geralmente, não espero muito a aprovação.

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