Imortalizada nas vozes de Ney Matogrosso e Fagner em um compacto de 1975, a dramática“Postal de Amor” ganha nesta sexta-feira (1º) uma releitura com batidas de trip hop e subtexto queer. Desta vez, o dueto é resgatado pelos artistas Daniel Peixoto e Filipe Catto, em produção assinada por Rodrigo Brandão e Carlos Gadelha, disponível em todas as plataformas de streaming.
A colaboração entre os artistas, cada um laureado à sua própria maneira no cenário LGBTQ, faz parte do projeto DP, pelo qual Peixoto lança releituras e remixes de músicas do seu repertório ou de artistas que admira, indo de Madonna a Novos Baianos. Em “Postal de Amor”, ele e Catto entregam a “trilha sonora de um filme imaginário”, misturando lirismo e performances dramáticas – elementos já característicos no trabalho de ambos.
“O mais engraçado é que a voz dele é fina e a minha grossa. Uma grave e outra aguda, mas de uma forma mágica, elas se parecem e combinam”, comenta Peixoto sobre o dueto, que se funde no timbre e nos estilos dos artistas.
Há mais de 15 anos no cenário musical, Daniel começou sua trajetória como o frontman do grupo Montage. Um dos mais celebrados atos de eletropunk no país durante a década passada, a banda se desmanchou em 2009, deixando uma legião de fãs saudosistas e hits como “I Trust My Dealer” e“Ode to my pills (Benflogin)“.
Desde então, ele apostou na carreira solo, construindo um novo som calcado em brasilidades, mas sem perder a essência eletrônica em lançamentos como os discos “Mastigando Humanos” (2011) e “Massa” (2017), o EP “Shine” (2011) e, agora, o projeto DP.
Em entrevista à Híbrida, o músico, que também está na TV com o programa “Porto Dragão Sessions“, sempre às segundas no Music Box Brasil, fala sobre o que despertou seu interesse em “Postal de Amor”, expressa sua admiração pelos artistas brasileiros e comenta projetos engavetados pela quarentena. Confira o papo completo abaixo:
HÍBRIDA: Postal de Amor não é sua primeira regravação. De Secos & Molhados, Novos Baianos e Madonna, seu repertório é recheado de novas versões inusitadas. Qual foi a inspiração para trazer um novo arranjo a este clássico de Ney Matogrosso e Fagner, especificamente?
DANIEL PEIXOTO: Bom, eu sou cearense, assim como o Fagner e o Fausto Nilo, que são os compositores da música. E, apesar de não ter sido um grande sucesso comercial pelo Brasil, “Postal de Amor” tocou muito no Ceará, talvez pelo Fagner ser de lá e tal, e eu cresci ouvindo.
Só estive pronto pra fazer uma regravação quando senti que podia fazer jus às originais
Sempre gravei só o que eu mesmo compunha, até lançar meu segundo disco solo, em 2017. A partir daí, me permiti gravar outros artistas, acreditando em minha evolução como cantor e respeitando as obras alheias. Acho que só estive pronto pra fazer uma regravação quando senti que podia fazer jus às originais. “Postal de Amor” é uma música que eu sempre quis gravar por achar linda e fazer parte da minha memória afetiva, mas só me senti pronto neste momento.
H: Você contou que a versão original é uma canção faz parte da sua memória afetiva. Desde o instante em que decidiu regravá-la até a finalização, você foi pego por lembranças da sua história, da sua infância? Caso sim, como foi isso?
DP: Durante o processo de gravação, eu lembrava da minha família ouvindo o compacto (que é o formato onde a música inicialmente foi lançada). Mas as memórias não afloraram durante o período da gravação, não. Elas vêm de antes. Durante o período de gravação, o que eu sentia era uma enorme satisfação de poder realizar o sonho de regravar uma obra que sempre curti.
H: Você sente algum tipo de pressão em trazer esses clássicos para o seu repertório? Como lida com isso?
DP: Não, pressão nenhuma. Até porque, no meio musical, acho que tem mais “respaldo”, digamos assim, quem compõe e grava suas próprias composições. Então, este tipo de cobrança eu nunca senti, não. Vejo a regravação como algo super pessoal mesmo, de querer dar a minha cara pra uma obra que tenho tanta admiração.
H: Por que escolheu o Filipe Catto pra te acompanhar nessa versão?
DP: O Filipe é, na minha opinião, o melhor cantor desta geração da qual fazemos parte. Nós nos conhecíamos do meio musical e sempre tive vontade de convidá-lo para fazer alguma coisa, mas ainda não tinha decidido exatamente o quê. Como a gravação original é um dueto – Fagner e Ney – imaginei que ele seria a pessoa certa e fiz o convite. Ele topou e acho o casamento perfeito, já que sempre quis gravar com ele pela admiração que tenho e pela doçura que ele é como pessoa. Foi uma honra trabalhar com um ídolo meu. Eu sou super fã.
H: Além do Catto, quais outros artistas nacionais você admira e gostaria de trabalhar junto?
DP: Eu tenho sorte de ter feito parcerias com artistas que admiro muito. O Edson Cordeiro, por exemplo, é um artista consagrado, com milhões de álbuns vendidos e o maior nome da queer music no Brasil nos anos 90 e 2000. Também já trabalhei com Gaby Amarantos, com o Xis, com a Thalma de Freitas, dentre outros.
Das pessoas com quem ainda não colaborei, tenho vontade de trabalhar com muitas. Eu gosto muito da Glória Groove. Acho que seria legal uma parceria com ela, porque, além de ser minha amiga, ela é do caralho. Linn da Quebrada é outra artista que acho fantástica também. E tem ainda a galera lá do Ceará, né. Talvez gravar com o próprio Fagner ou Ednardo, que são lendas e estão vivos.
Eu prezo muito por isso, de tentar fazer homenagens enquanto as pessoas ainda estão vivas. Como foi com os Novos Baianos, que recebi o aval de Moraes Moreira e é uma grande alegria que ele tenha conseguido ver essa homenagem antes de morrer.
H: Por falar em Moraes Moreira, nós, infelizmente, o perdemos há poucas semanas. A omissão da Secretaria Especial de Cultura, atualmente comandada pela atriz Regina Duarte, perante esta perda foi sentida com indignação por muitos representantes da classe artística brasileira. Como você analisa esse episódio para a cultura no país?
DP: Eu acho que a Secretaria de Cultura se tornou o exato retrato de toda a palhaçada que estamos vivendo nesse governo. Desde a posse do presidente, quando ele transformou o Ministério numa Secretaria, já temíamos coisas tão terríveis como as que estão acontecendo.
[Regina Duarte] não conhece a dor de ser artista independente no país, vivendo só disso e tendo que matar um leão por dia pra resistir com um mínimo de dignidade
Essa senhora é realmente o tipo de pessoa que entrou para o cargo sem absolutamente nada para contribuir. Porque ela nunca foi envolvida diretamente com a classe e não conhece a dor de ser artista independente no país, vivendo só disso e tendo que matar um leão por dia pra resistir com um mínimo de dignidade. Eu espero muito que ela, junto com toda essa galera desse governo, possa cair rápido e que quem venha a ocupar esse lugar tenha pelo menos bom senso e noção. Saudades, Gilberto Gil.[ministro da Cultura entre 2003 e 2008].
H: Ao longo de sua carreira, você se transformou sonoramente – do eletropunk do Montage a brasilidade eclética mais presente em seus atuais trabalhos -, mesmo sem perder uma certa essência. Esta mudança também aconteceu em nível pessoal?
DP: Sim. O Montage foi um projeto muito grande e que quebrou muitas barreiras. Nele, uma das principais regras era buscar uma sonoridade mais gringa. Quando acabou, em 2009, fiz questão de me transformar para as pessoas entenderem que meu som sozinho não era uma continuação do meu trabalho anterior. Além disso, esta foi a mesma época em que me tornei pai. Então, uma coisa puxou a outra: vi a necessidade de variar o som e mudar como ser humano, já que ganhei a responsabilidade da paternidade.
Quando o Montage acabou, fiz questão de me transformar para as pessoas entenderem que o meu som sozinho não era uma continuação do meu trabalho anterior
H: O que podemos esperar de seus futuros lançamentos?
DP: Antes do coronavírus, eu vinha trabalhando em três projetos distintos: a gravação do DP – que são lançamentos esporádicos de singles, na sua grande maioria releituras de trabalhos que já existem; o disco de comemoração dos 15 anos do Montage; e tava voltando ao estúdio com o DJ Gorky. A gente começou a fazer um disco em 2017 e pausamos.
Cerca de 20 dias antes da quarentena, já programávamos retrabalhar o álbum com o Gorky e lançá-lo. Agora, está tudo meio que estacionado por conta da pandemia. Outras coisas estão prontas, como “Postal de Amor”. Vou continuar lançando e tô tentando entender ainda como vai funcionar essas estratégias e o que vou priorizar. Se é o disco do Montage, que tem uma data importante – porque é em 2020 que fazemos 15 anos -, se continuo o trabalho com o Gorky etc.
H: Diante dos obstáculos apresentados pela pandemia e a conseguinte quarentena, uma das medidas tomadas por alguns artistas para se conectar com o público – e incentivar o isolamento social – tem sido a realização de lives. Você tem a intenção de fazer algo assim?
DP: Por enquanto, não. Tem muita gente boa fazendo isso com prazer, com tesão e eu não me sinto confortável pra fazer uma coisa dessas. A minha expressão artística é muito coletiva. Eu sou um performer, a minha banda tem sete músicos e venho da música eletrônica, por mais que tenha passado por outros estilos. Essa coisa de pegar um violão e ficar tocando não é a minha cara.
Óbvio que, mais cedo ou mais tarde, terei que me adaptar a alguma coisa nesse sentido, mas já que tem tanta gente fazendo coisas tão legais, não vejo necessidade no momento. Prefiro esperar a hora certa e fazer quando for um momento mais massa.
H: Podemos esperar por um clipe do novo single?
DP: Cara, a gente tava com uma produção toda engatilhada. Eu tinha conseguido investidores e uma produtora para fazer um clipe riquíssimo. Alugaríamos equipamentos de cinema, iríamos pra praia, ia ser uma coisa sobrenatural. Mas a quarentena foi declarada dois dias antes da gravação. Então, tivemos que pausar por tempo indeterminado. Assim que pudermos retornar, vamos juntar toda essa equipe de novo e o clipe sai sim, com toda certeza.