Híbrida
MÚSICA

Jup do Bairro: “Sou um corpo que já morreu inúmeras vezes”

Jup do Bairro: "Sou um corpo que já morreu inúmeras vezes" (Foto: John Halles | Divulgação)

Em junho, Jup do Bairro lançou sua primeira investida oficial em uma carreira solo com o single “Corpo sem juízo”. Com mais de 7 minutos, a faixa começa com uma leitura de Conceição Evaristo, uma das principais escritoras contemporâneas brasileiras. Na gravação, feita especialmente para a música, a autora mineira relata a angústia de uma mãe ao se deparar com o corpo da própria filha transexual assassinado no chão da rua.

“Numa troca de mensagens com Tainá Evaristo [sobrinha e assistente de Conceição], descobri que elas eram minhas fãs e da Linn [da Quebrada]. É a escritora que mais tenho lido ultimamente, uma referência para mim! Falei com a Tainá sobre o quão importante seria ter algo da Conceição na música. Ela avisou a tia, que amou o convite e pessoalmente escolheu o trecho registrado”, conta Jup.

Com batidas produzidas por BADSISTA e a voz grave de Jup rimando sobre as vivências e compromissos do seu corpo sem juízo, a música ainda traz também a participação de Mateusa Passarelli, a artista e estudante executada no Rio de Janeiro, em 2018. “Nós fomos próximas nesta trajetória, me inspirei e fui atravessada por ela em muitos momentos. Conversei com a Gabe Passareli, irmã da Matheusa, e ela ficou super feliz. Me enviou um áudio salvo e, quando ouvi tudo junto, nossa, fez tanto sentido! É uma música muito bonita justamente porque fala de corpos”, celebra Jup.

LEIA AQUI: Durante ato em sua homenagem, Matheusa Passarelli finalmente foi ouvida.

Além da carreira solo, Jup também segue acompanhando Linn da Quebrada pelos shows das turnês Pajubá e Trava Línguas, e divide com a amiga a apresentação do Transmissão, programa de entrevista que elas comandam juntas desde o último dia 11 no Canal Brasil.

Abaixo, Jup fala sobre a importâcia pessoal de “Corpo sem juízo”, o EP que está produzindo por financiamento coletivo e sua experiência com

Híbrida: ‘Corpo sem Juízo’ é uma letra de 10 anos e deve falar muito sobre você ainda. Como vê o amadurecimento dessa canção através da sua trajetória como artista?

Jup do Bairro: Quando escrevi essa música, a intenção era colocar pra fora o que eu estava pensando e vivendo naquele momento, sem pretensões de cantar ou ser artista. Depois, executando a escrita, começo a me apropriar disso e fazer arte. Nesse percurso, abandonei muitos textos e falas, senti outras urgências pra falar, afinal, eu mudei e meu corpo/mente me acompanharam nessas mudanças.

Ainda assim, continuei cantando “Corpo sem juízo” em shows e performances. Sentia que ela ainda fazia muito sentido pra mim e pro momento que vivemos. Agora, com a versão de estúdio, contando com a participação da BADSISTA, Conceição Evaristo e Matheusa Passareli, vi ainda mais sua importância e urgência. Tenho um single com algumas das minhas maiores referências. Quando eu ouvi pronta, de certa forma entendi a necessidade de relança-lá depois de tantos anos.

H: Para além de toda a dor da letra, há dois trechos que me tocaram de forma diferente. São: ‘E que eu teria dificuldade em reconhecê-la’ e ‘Explorando as potências do meu corpo’. Explorar as potências do seu corpo é o caminho para reconhecê-lo?

JdB: Eu gosto de repetir um adendo que a Glamour Garcia levantou em uma conversa e trago comigo de que “corpo é mente e mente é corpo”. Acredito que os processos de nossos corpos e mentes são sim uma forma de identificá-lós, muitas vezes por criar novos imaginários e possibilidades de vida que contemple. Essas duas frases são ditas por pessoas diferentes e de gerações diferentes que se encontram. As mudanças e explorações de si mesmo pode ser um processo dolorido e, muitas vezes, incompreendido. Mas pode ser a única forma de se sentir pertencente, pelo menos a você mesma.

As mudanças e explorações de si mesmo pode ser um processo dolorido e, muitas vezes, incompreendido; mas pode ser a única forma de se sentir pertencente, pelo menos a você mesma

– Jup do Bairro

 

H: Como é o trabalho de produção com a BADSISTA? Onde as vivências de vocês convergem para chegarem a um resultado tão singular?

JdB: A BADSISTA e eu temos uma conexão muito forte. Isso por sermos fazedoras artísticas da periferia (eu, do extremo Sul; e ela, da extrema Leste de São Paulo) e pra além. Temos muitas questões e pensamentos diferentes e talvez isso fizesse com que tivéssemos tanta coisa em comum.

Temos um projeto chamado Bad do Bairro, um experimento de improviso onde eu nunca sei exatamente o que ela vai tocar e nem ela o que vou cantar. Esse exercício já vinha de encontros onde nós duas sempre procurávamos um cantinho de alguma festa onde ela faz beatbox e eu um freestyle com o que vinha na cabeça. Eu a amo como amiga e amo o trabalho dela, é uma pessoa que eu preciso ter como aliada pra feitos pessoais e artísticos.

Jup do Bairro e Linn da Quebrada na estreia carioca da turnê "Pajubá", em 2017 (Foto: Ricardo Schmidt | Híbrida)
Jup do Bairro e Linn da Quebrada na estreia carioca da turnê “Pajubá”, em 2017 (Foto: Ricardo Schmidt | Híbrida)

H: Estamos em um momento muito inflamado para muitas situações. Em quem você quer causar uma febre, um alerta, com a mensagem do EP?

JdB: Bom, a pré-construção do EP, por ser um financiamento coletivo, já acarreta uma questão pertinente: Que corpos merecem ser financiados? Que corpos podem contar com uma colaboração coletiva? E, pra além, ainda não sei exatamente que músicas vão entrar no EP, visando que coisas podem mudar e eu estou 100% aberta para a colaboração e criação junto com os artistas que vou convidar pra participar disso comigo.

Mas o que quero, a princípio, é alertar o que precisa ser alertado, confortar quem precisa de conforto e, principalmente, usar de minhas conquistas e privilégios de acesso para entregar um trabalho que só eu e meu corpo poderíamos fazer.

É importante a gente pensar como a criminalização da LGBTfobia pode ser uma estratégia de fazer novos pretos e pobres serem presos

H: Politicamente a música fala de uma realidade até então negada, ou minimizada, que são os crimes por LGBTQfobia. Juridicamente criminalizados, há experança?

Jdb: É muito contraditório quando falamos de criminalização se, ao mesmo tempo, pensarmos em como funciona o nosso sistema penitenciário e que corpos são realmente retidos no cárcere, de forma desumana e sem condições básicas.

Estamos vivendo um Governo abertamente racista, é importante a gente pensar como a criminalização da LGBTfobia pode ser uma estratégia de fazer novos pretos e pobres serem presos. Não sei se há esperança, essa noção me soa estática, ‘esperando’. Precisamos de um real reconhecimento de classe para que possamos debater os “avanços” com mais horizontalidade.

H: Junto com o single também está na rua uma campanha de financiamento do EP Visual. Ele será um marco físico da sua trajetória como artista solo. Onde esse projeto mais te toca?

JdB: Sou um corpo que já morreu inúmeras vezes e que ainda está andando na beira da morte em vida todos os dias. Isso é um fato. Acredito que o EP visual será um presente à minha geração, mas também é a forma que encontrei para continuar produzindo, me curando, recriando e trabalhando.

CLIQUE AQUI para contribuir com o 1º EP visual de Jup do Bairro

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