Híbrida
MÚSICA

O final feliz e um novo recomeço na fábula de A Maia

Marcella Maia ão tem medo de sonhar alto. Nascida em Juiz de Fora, na zona da mata de Minas Gerais, ela foi descoberta por um olheiro enquanto trabalhava no semáforo de Brasília e a partir dali nunca mais parou de rodar o mudo, indo do Teatro Oficina, em São Paulo, para o set de “Mulher Maravilha”, em Hollywood. Trabalhou como modelo, atriz de teatro, cinema e televisão, e agora se lança na música, com um primeiro single que quer inspirar as pessoas como ela a sonharem alto também.

“O sistema quer a gente chegue de cabeça baixa e se sinta grata o tempo todo. Os meus e as minhas já estão cansados”, conta para a Híbrida durante uma conversa por telefone, provavelmente uma das poucas que ligaram a Riviera Francesa, onde ela estava, ao litoral de Iriri, no interior do Espírito Santo. O clipe do seu primeiro single, “Pra Dá Dolce Bacana”, tinha sido lançado há menos de uma semana.

Dirigido por ela, o vídeo esbanja tanta opulência, dos looks às images de A Maia (sua nova alcunha artística) em carros luxuosos, que parece um sonho desvairado de David LaChapelle. Ela sabe que o público não está acostumado a ver mulheres trans nesse contexto. “Eu quero que eles vejam na prática esse poder e empoderamento, a riqueza, aquilo que não é nossa realidade.”

Mas não se deixe enganar pelas etiquetas e glamour: A Maia ralou muito para chegar ali. Além das dificuldades e transfobias enfrentadas nas carreiras de modelo e atriz, a jovem mineira se descobriu vítima de tráfico sexual quando chegou à Europa, com passaporte “confiscado” e a obrigação de se prostituir. Hoje, ela reconhece que superar essas experiências é um exercício de vigilância constante.

Leia a entrevista abaixo:

A Maia no set de gravações de "Mulher Maravilha" (Foto: Reprodução)
A Maia no set de gravações de “Mulher Maravilha” (Foto: Reprodução)

HÍBRIDA: O que te levou à música?

A MAIA: Toda vaidade e frustração que eu tive no meu trabalho artístico, de forma geral. Quando fiz o musical [“Roda Viva”] do Chico Buarque, sofri muito por acreditar que não podia cantar porque minha voz morria na garganta. Ao mesmo tempo foi um processo muito rico de reconhecer minha voz, que não tinha força. A música salvou a minha vida. Quando eu passei pela transição, estava em depressão no Brasil e a música veio como uma vertente muito poderosa me trazer essa voz.

Minha primeira peça foi na Igreja Batista, quando eu cantava no coral, aos 12 anos. Aos 13, passei num concurso [de modelo] para participar de publicidade. Como a minha família era muito pobre e minha mãe engravidou, tive que abrir mão desse sonho. Estava trabalhando no sinal quando um olheiro me viu e me contratou, não como modelo, mas como um novo olheiro.

H: Você chegou a gostar do trabalho na moda?

AM: Eu sofri muito porque viviam apontando pra minha cara e me mandando acordar, ‘Alice’, porque eu não seria isso tudo que sonhava. Depois de 20 agências baterem com a porta na minha cara, fui pra Turquia e trabalhei três empregos pra conseguir fazer isso dar certo.

A Maia: “Muitas vezes eu fui transfóbica comigo e com outras, por ter vergonha de ser travesti e de ter me prostituído” (Foto: Divulgação)

O cabelo para uma mulher trans é uma questão muito forte. Foi quando cortei meu cabelo estilo “Joãozinho” para um job que senti empoderamento. Mas a moda me trouxe muito mais disforia do que eu já tinha, é um ambiente muito cruel. Principalmente no Brasil, onde a maioria das biu come arroz com feijão e arrota caviar. Eu amo arroz com feijão, mas essa mentalidade de humilhar o outro me irrita muito.

H: O que essa experiência na moda, no teatro e no cinema acrescentaram à sua busca pela carreira musical?

AM: Muito sobre a troca com o outro. Cheguei ao teatro muito avoada, ele me aterrou e ensinou muito. Aprendi com a dor, então sou muito grata ao teatro. Foi ele que me fez atriz. É onde você aprende que errar tudo bem e isso foi muito rico pra mim.

H: Qual é a mensagem que você queria passar com “Pra Dá Dolce Bacana”?

AM: Esse clipe foi muito difícil, porque foi feito com o meu know-how, dando a cara a tapa. Nunca tive apoio ou apadrinhamento nesse sentido, fiz porque sou aquela pessoa que me jogo totalmente para realizar meus sonhos e não me arrependo. Vim das ruas, de uma família muito difícil, cresci em periferias brasileiras, então lembro muito de sempre querer ter mais de um tênis.

Ao lidar com o meio artístico, a gente até vê representatividade. Mas vê também que o sistema quer a gente chegue de cabeça baixa e se sinta grata o tempo todo. Os meus e as minhas já estão cansados. Eu quero que eles vejam na prática esse poder e empoderamento, a riqueza, aquilo que não é nossa realidade. Quero que entendam de onde os sonhos vêm, que sonhem e corram atrás. Tem uma música que diz “You can’t always get what you want”

H: “But if you try sometimes, you just might find what you need”

AM: É muito lindo isso. Quando a gente vai pro mundo, não tem como puxar ninguém. É você sozinha com deus e é uma estrada muito solitária, porque você tá sempre viajando e correndo atrás de realizar um sonho. Tive que deixar muitas pessoas que eu amo pra trás.

É possível pegar toda a força do ódio despejado ao corpo trans e transforma isso em amor e luz para puxar outras pessoas

H: Como foi sair de Juiz de Fora e estar em Milão? Sente que, enquanto mulher trans, teve mais aceitação na Europa?

AM: Era muito difícil o rolê todo [em Juiz de Fora]. Sofri várias questões transfóbicas, já apanhei na rua. Eu não consigo nem mensurar o tamanho dos abusos. Era tão desesperador e eu queria tanto sair de lá, que me deixei levar por uma biu que conheci e fui traficada. A bicha pegou meu passaporte e eu tive que me prostituir.

Mas tudo isso me fez a mulher que eu sou e aprendi a ser grata. Só de uns três anos pra cá que eu consigo falar com propriedade sobre isso. É possível pegar toda a força do ódio despejado ao corpo trans e transforma isso em amor e luz para puxar outras pessoas. Acho todo discurso válido.

H: Vítima de tráfico humano. Como isso aconteceu?

AM: É, porque é difícil. Nossos corpos são tão marginalizados. Eu costumo falar que todo dia me olho no espelho e falo: “Hoje não vou ser racista, misógina, nem transfóbica”. Porque muitas vezes eu fui transfóbica comigo e com outras, por ter vergonha de ser travesti e de ter me prostituído. É muito difícil falar isso com propriedade e entender que você não tem culpa disso, que a sociedade te colocou nesse lugar. Mas cada vez que eu falo, me torno mais forte e nada consegue me atingir.

H: E agora, o que vem pela frente na carreira da música?

AM: Estou destrinchando o roteiro do próximo clipe e acho que daqui uns meses deve ser lançado. O próximo single fala sobre relacionamento abusivo, então é uma pegada mais melódica, pra fazer amorzinho, mas com uma letra pesada. Já tá gravado. Esperei muito tempo e tenho muita coisa pra falar.

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