Uma das artistas mais celebradas e influentes da última década, Sophie reafirma a versatilidade do seu legado musical através do disco SOPHIE, lançamento póstumo que chega ao streaming nesta quinta-feira (26). Quase quatro anos após a sua morte em um acidente trágico, a artista deixa claro nas 16 faixas desse álbum homônimo que, mesmo não estando mais aqui, o som pioneiro que fez em vida ainda reverbera no pop que ouvimos hoje.
Segundo as gravadoras Transgressive e Future Classic, responsáveis pelo lançamento, Sophie deixou seu disco final quase pronto antes de morrer, em 30 de janeiro de 2021. Amigos e colaboradores próximos decidiram terminar o projeto, que celebra o caráter visionário da artista.
Já de cara, “Intro (The Full Horror)” marca uma ambientação sombria e crescente, como tem se tornado mais recorrente em introduções e interlúdios instrumentais dos últimos anos. A faixa entrega que as partes essenciais da produção de Sophie estão presentes no disco. Ao fundo, é possível ouvir cachorros latindo, um dos muitos sons inusitados que aparecem ao longo do trabalho e marcaram a carreira da artista.
Na sequência, “Rawwwww”, com versos do rapper Jozzy, mantém o mesmo clima soturno, com graves pesados e reverb exagerado, como tem sido regra fundamental no trap. “Plunging Asymptote”, com Juliana Huxtable, começa a transição para o eletrônico experimental que fez Sophie destoar de seus contemporâneos, com sintetizadores distorcidos no clima da melhor festa clandestina que você iria numa noite de sábado.
Um dos destaques do disco é “The Dome’s Protection”, com Nina Kraviz. Ao longo de quase oito minutos, a faixa te transporta pra uma viagem apocalíptica, futurista e contemplativa de uma “realidade imprevisível que se tornou um algoritmo capaz de resolver uma série de perguntas”.
Em “Reason Why”, com as contribuições de Kim Petras e BC Kingdom, está a maior e mais evidente investida no hyperpop pioneiro de Sophie, com uma leve pegada de tropical house, que se torna mais pungente em “Live In My Truth” e “Why Lies”, parcerias com BC Kingdom e Liz.
A segunda metade do disco é dedicada à fritação das pistas de dança, começando com “Do You Wanna Be Alive?”, parceria com Big Sister que transiciona de forma limpa para “Elegance”, outra colaboração com Popstar. É aí que vem “Berlim Nightmare”, um dos singles de divulgação e o ponto alto do disco, que entrega exatamente o que você imagina pelo título. Com a ajuda de Evita Manji, a faixa é um techno que chamamos de “eletrônica chic”, alinhando entre graves pesados e sintetizadores distorcidos. O tipo de som que comanda o ouvinte a prestar atenção e, inevitavelmente, render-se à pista de dança, uma característca irresistível do trabalho de Sophie e também um dos seus maiores legados para a cultura.
O pioneirismo e o legado de Sophie
Desde que surgiu no início da década passada com singles como “Bipp” (2013), a compositora, produtora e DJ britânica Sophie mostrou que queria quebrar os padrões da música pop e eletrônica como eram conhecidas até então. Associada ao coletivo PC Music, reconhecido mundialmente pelo caráter inovador e pioneiro de seus artistas e lançamentos, ela foi lançando parcerias e faixas cada vez mais intrigantes e interessantes.
Suas músicas misturavam uma série de sons inusitados e, até certo ponto, “artificiais”, mas captados pessoalmente por ela. Com batidas que pareciam gravadas através de um plástico sendo esticado, vidro arranhado, balões de látex e bolhas de chiclete estourando sobre sintetizadores rápidos, não havia nada remotamente parecido com aquilo até então.
Apesar do estranhamento inicial da crítica e de parte do público, o som de Sophie conquistou as pistas de dança europeias através de uma audiência clubber e underground, que entendia naquela “maquinaria” uma proposta diferente de viver e sentir a música. De 2013 em diante, as parcerias que fez com outros nomes da cena “eletropop alternativa”, como Arca, Shygirl, A. G. Cook, Cashmere Cat, Kim Petras e Charli xcx, ajudaram a mostrar que a artista, além de prolífica, também era capaz de estender e aplicar sua identidade musical por outros gêneros menos óbvios.
O caráter experimental de suas produções eletrônicas acabou apontando o caminho para o futuro do pop e suas vertentes focadas nas pistas de dança, principalmente o hypperpop, marcado pelo uso de sintetizadores pesados, autotune e samples de “barulhos” inusitados. Ainda em 2015, Sophie atingiu o ápice do mainstream ao ser creditada como uma das produtoras de “Bitch, I’m Madonna”, terceiro single lançado pela Rainha do Pop para promover o disco Rebel Heart.
Nos anos seguintes, Sophie colaborou de forma recorrente com Charli xcx, até que lançou “It’s Okay to Cry”, primeiro single do seu disco de estreia, Oil of Every Pearls Un-Inside. A música, considerada uma de suas melhores e mais marcantes, trazia os vocais até então inéditos da própria artista. Não suficiente, ela ainda usou o clipe para declarar publicamente e pela primeira vez que se identificava como uma mulher trans.
Oil of Every Pearls Un-Inside acabou indicado no ano seguinte ao Grammy de Melhor Álbum Dance/Eletrônico, mas esse está longe de ser o seu maior feito. A grande conquista de Sophie é a influência que ela causou no pop e que permanece até hoje, quase quatro anos após sua morte.
Pouco antes do acidente que tirou sua vida, Sophie estava trabalhando com Lady Gaga nas sessões do que se tornaria mais tarde o Chromatica. Ainda que não esteja oficialmente creditada no trabalho, a efervescência eletrônica das suas produções pode ser percebida ao longo do álbum, quando as músicas explodem em grandes momentos dançantes.
Artistas como Rosalía, Kim Petras, Dua Lipa, Sam Smith e Billie Eilish têm molhado os pés ou mergulhado de vez em projetos experimentais de música eletrônica, seja em discos inteiros de remixes ou faixas pontuais, atingindo ao longo do caminho algum nível considerável de sucesso crítico ou comercial. Mas em todos eles, é possível ouvir os sintetizadores e samples inusitados do hyperop que Sophie ajudou a criar e que hoje estão diluídos em maior ou menos grau no pop mainstream.
A influência mais óbvia, entretanto, está no brat, o disco de Charli xcx que até então é o maior e mais relevante fenômeno cultural do pop em 2024. Da estética visual à produção descaradamente experimental e eletrônica, ela e o produtor A. G. Cook, amigos e colaboradores da artista, parecem ter escolhido propositalmente honrar a sua memória e investir em uma versão mais palatável e comercial do tipo de som que Sophie criou em vida, mas que só agora começa a conquistar o reconhecimento que sempre mereceu da crítica e do público.