“Volto, volto, volto/Chego num carro naval/Volto, luto e choro/Em pleno carnaval”. É assim que Thiago Pethit canta o “abre-alas” de seu 4º álbum de estúdio, “Mal dos Trópicos (Queda e Ascensão de Orfeu da Consolação)”, após um hiato de cinco anos da produção musical. “Foi uma pausa necessária, pessoal. Consequentemente artística, porque minha música é fruto desse material humano e das minhas experiencias”, conta, em entrevista à Híbrida.
A pausa, ele explica, foi fruto de quase uma década trabalhando sem parar e emendando um disco no outro, com direito a turnê e todo o aparato de divulgação que o trabalho pede. “Eu precisava de um tempo para viver pra além da minha carreira. Sentia também que aquilo que eu havia construído para o disco ‘Rock n Roll Sugar Darling’, a ideia de uma celebração gay, libidinosa e libertaria, já começava a não fazer sentido no Brasil que se configurava.”
Pethit usou esses anos para descobrir aonde o seu próximo trabalho o levaria. E, quando chegou a hora de gravá-lo, o cantor vivia uma fase de efervescência criativa ao mesmo tempo em que Brasil atravessava uma de suas eleições mais bagunçadas e traumáticas. “Sinto que foi inevitável ser influenciado por estes temas políticos”, ele observa, explicado ao mesmo tempo que essa influência não precisa estar tão óbvia na obra.
“Nada é apolítico”
O posicionamento de Pethit e o que ele acha, sente e espera desse momento político no Brasil não é algo perceptível para ouvidos desatentos. Ele aparece em escolhas criativas aqui e ali, letras embutidas em uma música e outra. “Não tenho nenhum interesse em ser literal, pois ter consciência política não significa necessariamente ser literal ou discursivo sobre isso. Mas a política está lá, nas escolhas narrativas e estéticas que eu fiz”, explica.
E enquanto alguns artistas têm se voltado para “músicas de protesto”, muitas vezes levantando bandeiras de forma vazia e interesseira, Pethit reafirma de que lado está mantendo a mesma identidade que teve desde o início de sua carreira: “Nada é apolítico. Talvez somente a ignorância, quando ela não é uma escolha. Porque mesmo a alienação é uma decisão política”, explica.
A produção é assinada por Diogo Strausz, que também ajudou a moldar o Rainha dos Raios”, de Alice Caymmi. Juntos, ele e Pethit participaram de reuniões antes mesmo de entrarem em estúdio. “Sempre me chamou atenção que havia algo de ‘escuro’ nas produções, sobretudo iniciais, dele. É meu primeiro disco em que artista e produtor não precisaram ficar fazendo concessões para entender linguagens e limites entre as criações”, conta.
O momento de crise econômica, social e política influenciou até a sonoridade do disco, na qual Pethit se aventurou pela primeira vez no samba, como forma de mergulhar na cultura brasileira .”Quando [eu e Strausz] criamos esse samba, conversamos com o [Maurício] Badé para que ele criasse uma batida mais antiga, mais ‘desencontrada’ – algo próximo do carnaval de rua dos anos 40, 50. Esse samba que dá nostalgia de um tempo que, na verdade, nunca existiu. A nostalgia trágica de um sonho, de uma ideia, que não virou verdade”, conta.
Ao longo do disco, outra surpresa: um cover de “Nature Boy”, clássico lançado inicialmente na voz de Nat King Cole, em 1948, e que já ganhou versões de nomes que vão de Lady Gaga e Elton John a Ella Fitzgerald e Caetano Veloso, este responsável pela primeira vez que Pethit ouviu a canção. “Sempre gostei dessa música, é uma das minhas preferidas da vida. E ela tem essa sugestão homoerótica na letra… não é claro, mas sempre a vi como um encontro entre dois homens apaixonados”, explica, afirmando que “o tema meio mítico e meio mágico” cabia perfeitamente no repertório.
Orfeu pop e paulistano
Embebido em referências mitológicas, “Mal dos Trópicos” se desdobra em lascívia, remorso, desejo e nostalgia. No som, Pethit mantém seus traços originais, mas mistura trip hop, um noir meio lynchiano e produções pop oitentistas. Tudo isso, às vezes, ao mesmo tempo. A confessional “Me Destrói”, por exemplo, poderia ter sido escrita com “Justify My Love”, de Madonna, tocando ao fundo; até que aparecem violinos e, então, parece uma cena dirigida por Paul Schrader.
Talvez a solidão e o desamor sejam até mais universais do que o amor em si
No eixo central disso tudo, o sentimentalismo romântico e pessimista que transpassa a obra de Pethit desde “Berlim, Texas”, o début lançado em 2008. “O amor é um tema universal, mas ele não acontece de forma universal. Eu sou um homem gay, branco e cisgênero e o amor tem formas de acontecer pra mim que não são as mesmas para um homem hétero, ou para mulheres, trans ou pretos. Talvez a solidão e o desamor, em maior ou menor grau, sejam até mais universais do que o amor em si. E por isso esses temas me interessam tanto”, ele observa.
Em tempos de amores líquidos e relacionametos que começam com a facilidade de um tap, Pethit é relutante em avaliar como redes sociais e apps podem moldar a solidão ou o amor para LGBTs, mas esclarece: “Posso dizer que, bem… O amor e o sexo e, sobretudo, o desejo me afetam. Muito. Independente dos apps ou dos nossos tempos. A Hilda Hilst tem uma frase sobre o desejo que foi escrita em 1992, muito antes destas modernidades, e que segue valendo: ‘o desejo é lava, depois pó e depois nada'”.
Em uma cidade como São Paulo, o que não falta nas ruas e nas noites são essas lavas e pós e nadas. E, não coincidentemente, a metrópole também serve de cenário para a história do Orfeu contemporâneo. Referências à cidade vêm no título do trabalho e passam por beijos no Copan, bares da Consolação (“Orfeu”) e o techno da República.
“São São Paulo, meu amor. São São Paulo quanta dor. Essa cidade muda demais né?”, comenta Pethit, analisando como a capital paulistana e seus personagens mudaram desde seu último disco. “Na época em que eu escrevi essas músicas, a noite estava vivendo uma efervescência que eu não via há muito tempo e que eu sempre sonhei que pudesse voltar a acontecer.”
Pelas noites, ele viu os rolês independentes crescerem, capitaneados por coletivos de mulheres, gays, pretxs, trans e por aí vai. Também viu ‘a cena’ sair de clubes caros e selecionados para ocupar as ruas. “Uma noite muito mais democrática e diversa. Rolou um vislumbre de liberdade e independência para quem cria a noite e para quem frequenta: de repente, a gente não precisava mais pagar o preço de um aluguel para entrar num clubinho fechado, careta, com drinques caríssimos”.
Ele cita o pessoal da Teto Preto e da festa A Tenda, nas calçadas da L’Amour. Mas também começa a enxergar o começo do declínio de uma era: “Desde as eleições em 2018, o clima tem sido estranho. E São Paulo, infelizmente, é uma cidade que só gira em torno do dinheiro e dos empresários, e isso tudo tem sido um desafio pra quem conquistou esses espaços nos últimos anos”.
É nesse cenário mutante que Thiago Pethit voltou para a música, com mais cautela, mas ainda querendo ver o fogo pegar samba, como ele canta. Clipes e shows, ele avisa, virão; mas em seu próprio tempo: “Eu aprendi muito esses anos sobre o tempo. Respeitar a mim primeiro, depois as exigências do mercado. Isso é essencial pra minha felicidade e para o meu trabalho”.