Victor Piercing, 47 anos, foi literalmente criado em cima dos palcos das casas noturnas LGBTQIA+. Começou muito cedo e, com muita criatividade, apresentou ele mesmo um personagem diferente das tradicionais divas que estavam em voga na época. Montando de forma andrógina, ele passou a dublar os clássicos do rock enquanto apresentava um personagem agressivo e provocador.

Dos anos 1990 até o início do novo milênio, Victor Piercing reinou absoluto na cena queer, desbravando raves e boates de todo o Brasil e até algumas do exterior. Atualmente, o artista nascido em Osasco se apresenta esporadicamente enquanto ganha a vida dando aulas de maquiagem artística, especialidade que dominou com maestria ao longo do tempo.

Na carreira como professor, Victor Piercing passa adiante todo seu legado e experiência. Nesta entrevista, ele narra sua trajetória explosiva e as marcas que deixou na noite paulistana.

HÍBRIDA: Como você entrou pro show business gay?

VICTOR PIERCING: No começo, fui pra Presidente Altino, um bairro de Osasco. Comecei me apresentando com a drag Agatha Lemanski, ele como Madonna e eu como dançarino.

H: Quantos anos você tinha?

VP: Eu tinha 13, era menor de idade. (risos)

H: Onde vocês se apresentavam?

VP: Era um bar/boate, “Bambus Boli”. Depois, comecei a fazer sozinho também.

H: Como eram essas apresentações?

VP: Eu curtia Cindy Lauper, The Cure, Nina Hagen e ficava imaginado fazer alguma coisa diferente daquela pegada “Diva”. Tinham as bandas rock com alguns personagens exóticos, neo góticos, porém masculinos. Comecei a fazer uma coisa mais masculina, às vezes andrógina, com um acento rock.

H: E o público gostava?

VP: Começou a fazer bastante sucesso. Acabei participando do concurso na famosa boate Nostro Mundo, chamado “Nasce uma Estrela”.

H: Como foi esse concurso?

VP: Eu já tinha quase 18 anos. A histórica drag Miss Biá que apresentava. Eram muitas candidatas e fiquei em terceiro lugar, com um visual totalmente diferente das outras participantes. Isso foi em 1993.

H: Mas o pessoal não criticava? Eles estavam acostumados com o visual “Diva clean”. Como foi?

VP: Ih, eles malhavam. Na verdade, não só eu, mas as críticas eram contra as drag queens. As transformistas e as travestis diziam “ih, esse daí logo vai virar travesti”.

Victor Piercing na capa da edição de junho de 2000 da revista "O Grito" (Foto: Reprodução)
Victor Piercing na capa da edição de junho de 2000 da revista “O Grito” (Foto: Reprodução)

H: Nessa época, você já vivia do seu trabalho artístico?

VP: Não. Eu tinha meus trabalhos diurnos. Foram muitas coisas, desde trabalho no supermercado Pão de Açúcar até escritório de cobrança. E, de noite, me apresentava esporadicamente em variadas boates: Sky, Proibidus, HS, Night Boys etc. Pra ganhar dinheiro, cheguei a dançar de gogo boy também.

H: Mas você tinha o perfil?

VP: Na época, os gogo boys eram todos muito musculosos, mas eu era novinho, esbelto e fazia um sucesso!

H: Tinha uma história duma banheira de espuma….

VP: Tinha. Na Night Boys, era chamada de “Ducha Erótica”. Mas, na verdade, eu fiz muito como gogo boy.

H: Mas no meio dos outros boys? E dava certo?

VP: Sim, e ainda ganhava bebida dos clientes. Juntava um monte de clientes na beirada do palco, onde me apresentava. Fazia sucesso porque eu era totalmente diferente dos outros gogo boys. Além disso, eu tinha um corpo… (risos)

H: Quando você começou a fazer performance mais profissionalmente na noite LGBTQIA+?

VP: Em 1996, quando fui pra Londrina, no Paraná, junto com a Dimmy Kieer, que é meu amigo há 30 anos. Ele me ajudou bastante me indicando nos lugares e dizendo “ele tem uma coisa diferente, um show diferente”. Isso abriu portas.

H: Nessa época, como era seu estilo?

VP: Inicialmente, eu fazia uma apresentação andrógina e neo-gótica. Depois, fiz performances mais monster e terror. Mas eu vi que tinha que alternar andrógino com terror, senão só iam me chamar pra Halloween. (risos) Tive que diversificar para trabalhar no resto do ano.

H: Você foi residente de alguma casa noturna?

VP: Fui, da Diesel Base, onde tinha um show montado. Mas me apresentava com frequência na Mad Queen, na Massivo, na Sogo uma semana sim e outra não, e na Salvation, onde tinha um personagem Victor Piercing meio leopardo meio leão – bem diferente do que as drags apresentavam.

Victor Piercing em catálogo de exposição do MIS (Foto: Reprodução)
Victor Piercing em catálogo de exposição do MIS (Foto: Reprodução)

H: De onde você tirava as ideias pras performances?

VP: A maioria das ideias vinha com a música. Sempre ouço a música para criar o personagem.

H: Para criar seus personagens, você precisou aprender a se maquiar e se montar. Como foi isso? Fez algum curso?

VP: Não. Foi olhando o pessoal fazer. Sou autodidata. De inglês, de espanhol, de culinária. Pra mim sempre foi fácil aprender: só de olhar os outros, já manjo e pego o jeito. Hoje em dia, sou professor de maquiagem.

H: Mas, no início, alguém te maquiava?

VP: Não. Sempre fui eu que me maquiei.

H: E você fazia a montação andrógina ou monster sozinho?

VP: Sim. É um dom artístico, né?

H: Houve um momento em que você explodiu e se apresentou em todos os lugares, viajou etc. Quando foi isso?

VP: No ano 2000, entrei no meu auge. Apareci em programa de TV, fui entrevistado pelo Gugu duas vezes.

H: O Gugu te tratou bem?

VP: Ele foi ótimo e ainda mandou aumentar meu cachê de direitos de imagem. Também fiz o programa da Luciana Gimenez.

H: Essa fase boa durou quanto tempo?

VP: Até 2007. Foram anos muito bem explorados, muito bem vividos. Viajei o Brasil inteiro, fui pra Itália duas vezes, sempre com passagens de ida e volta antecipadamente compradas pela casa noturna onde nos apresentamos.

H: E como foi sua experiência na Itália?

VP: Na Itália, a apresentação não tem a ver com dublagem nem com performance. Você sobe no palco e dança. É um “dancer”. Também fiquei vários meses morando na Venezuela e trabalhei lá.

H: Como é a apresentação na Venezuela?

VP: No Brasil, se você faz mais de 5 minutos de performance, o povo já fica te olhando torto e acha que você está demorando demais no palco. Mas, na Venezuela, o artista tem que fazer três músicas, uma seguida da outra, com o mesmo visual.

H: Era exigência da boate?

VP: Sim, e é costume do público. Aqui, o público não te aguenta mais que 4 minutos. No exterior, querem que você fique 15 minutos…..

H: Como é a estrutura da sua apresentação no Brasil?

VP: No Brasil inteiro, nas casas noturnas onde me apresentei, me contratavam para fazer duas performances: eu me apresentava, algum artista vinha depois de mim pra me dar um tempo pra troca de figurino, e eu voltava pra segunda performance.

H: Você não ficou tentado a ficar na Itália?

VP: Quando fui para lá, estava no meu auge aqui no Brasil. Fiquei com medo de arriscar e ter que começar tudo de novo por lá.

H: Você viveu todo esse percurso e de repente tudo mudou. Como foi isso?

VP: Acho que depois da pandemia tudo mudou. Tem gente que não fazia outra coisa a não ser trabalhar na noite. Já eu, trabalho com eventos há 30 anos. Antes da pandemia, já estava me direcionando pra trabalhar mais como maquiador.

H: E como fez na pandemia, quando não podia sair de casa?

VP: Eu cozinho, então comecei a vender tortas e empadão. Vendi para pessoas daqui do centro de SP. Consegui por no ifood e no rappi. Aproveitei a pandemia pra fazer um curso de “boas práticas de alimentação” e me aprofundei em culinária.

H: Atualmente, quais são suas atividades?

VP: Sou professor de Maquiagem e Criação de Personagem no Senac, dentro do curso de Teatro. Também dou aulas no Instituto Divas, que é uma escola profissionalizante, de maquiagem e beleza. Dou aulas particulares e faço maquiagem de casamentos.

H: E as performances?

VP: Atualmente, não tenho feito muita performance, só quando convidam. Tenho feito host de várias casas noturnas. Pra mim é melhor. Já tenho 47 anos, ficar carregando malas com grande produção pra lá e pra cá é muito cansativo. Aprendi a trabalhar com listas, gerar QR Code para o pagamento do público. Atualmente faço tudo isso no Andrômeda Club e na Aloka.

H: Das performances que fez, qual curtiu mais?

VP: A da serra que soltava faíscas. Fez muito sucesso.

H: Vamos voltar um pouco no tempo. Qual foi a reação das pessoas quando você pintou o cabelo de azul e pôs vários piercings? Quando foi isso?

VP: Foi em 1998, quando eu trabalhava na galeria Ouro Fino, numa loja de fetiche. Havia um salão de cabeleireiro voltado para o público alternativo.

H: Então você estava “em casa” e não deu rolo algum…

VP: Sim. Cheguei a ter 33 piercings e as pessoas perguntavam “você tem na língua?”. E queriam que eu pusesse a língua pra fora pra que elas vissem. (risos)

H: E hoje você tem quantos piercings?

VP: Devo estar com uns 14…

H: Não quis tirar depois que passou a onda?

VP: Minha dentista sempre briga comigo. “Ainda está usando? Você sabe que isso estraga o dente!” (risos)


Pedro Stephan é fotógrafo e jornalista, mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Trabalhou na imprensa LGBTI+ do Brasil, em veículos como Mix BrasilG MagazineG Online e Sui Gêneris Press. Já expôs seu trabalho na Inglaterra, Portugal, Espanha e Itália bem como nos prestigiados salões do eixo São Paulo-Rio.

**O autor é integralmente responsável pela veracidade dos dados, pelas opiniões e pelo conteúdo do trabalho publicado.