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“Emilia Pérez”: musical conta odisseia de traficante trans que abandona o crime

Zoe Saldaña e Karla Sofía Gascón protagonizam o musical "Emilia Pérez" (Foto: Divulgação)

Depois de ser aclamado no Festival de Cannes deste ano, Emilia Pérez foi o título escolhido para abrir a programação oficial do 26º Festival do Rio, que começa nesta quinta-feira (3) e vai até o próximo dia 13. Concorrendo nas principais categorias da premiação carioca, o filme segue Manitas Del Monte (Karla Sofía Gascón), chefe de um cartel mexicano que planeja abandonar a “profissão” e fazer uma cirurgia de redesignação sexual para viver como a personagem que dá nome ao longa-metragem.

Com direção e roteiro assinados pelo cineasta francês Jacques Audiard (Ferrugem e Osso, O Profeta), a história começa quando Rita Moro Castro (Zoe Saldaña), uma advogada infeliz com seu emprego, é contratada por Manitas para ajudá-lo na missão dupla de abandonar o crime e transicionar de gênero, podendo assim viver como Emília Pérez.

Como se isso não bastasse, há ainda um outro problema a ser resolvido: o que fazer com Jessi Del Monte (Selena Gomez), mãe dos dois filhos de Manitas, que precisa lidar com a perda do ex-marido e a nova vida que foi escolhida para ela.

Para contar a bagunça dessa trama, que é livremente adaptada do romance Ecoute (2018), de Boris Razon, a direção de Audiard constrói um musical cuja essência da narrativa se equilibra entre a comédia, os momentos dramáticos que a história pede e o combo de adrenalina e tensão necessário para dar credibilidade à saga de um traficante.

A ópera pop de Emilia Pérez

A trilha original de Emilia Pérez é uma ópera pop assinada por Camille Dalmais e Clément Ducol e a grande responsável por dar o tom geral do filme. A música funciona como fio condutor e aparece nos momentos mais inesperados, por vezes durando apenas o intervalo de um diálogo e, em outros casos, provocando uma sequência irresistível de opulência visual, coreografias, cenografia e fotografia capaz de cativar até quem nutre uma repulsa automática pelo gênero.

É graças a essa mise-en-scène dos números musicais e à forma discreta como eles são inseridos na narrativa que a direção consegue evitar que as sequências pareçam longas, entediantes, constrangedoras ou descabidas. Pelo contrário, elas incrementam ainda mais a história como cenas essenciais para o público entender as motivações, angústias, desejos e complexidade das personagens.

Selena Gomez durante o primeiro número musical de Jessi, sua personagem em "Emilia Pérez"
Selena Gomez durante o primeiro número musical de Jessi, sua personagem em “Emilia Pérez”

Alguns dos melhores exemplos disso são as cenas de Jessi, onde a experiência prévia de Selena Gomez como popstar complementa a sua performance como atriz. Por sinal, a personagem é o maior risco que a já artista assumiu em sua carreira, graças à complexidade emocional do papel de uma mulher jovem que precisa equilibrar a vida regrada com o luto e seus desejos pessoais.

É verdade que não há muitas nuances na forma como Selena dá vida a Jessi e que a atriz também tropeça aqui e ali ao falar em espanhol de forma natural. Mas, em sua defesa, a personagem não chega a ser desenvolvida com a mesma profundidade que as duas protagonistas. Ainda assim, em comparação com suas experiências prévias em frente às telas, a atriz ganhou em Emilia Pérez uma oportunidade ainda inédita para provar que consegue ir além da jovem descolada, rebelde e inatingível que tem interpretado até hoje.

A atriz trans Karla Sofía Gascó vive Emilia Pérez, a protagonista do musical que abriu o Festival do Rio de 2024 (Foto: Divulgação)

A grande estrela do filme, entretanto, é a espanhola Karla Sofía Gascón, que alterna com determinação e sutileza as emoções da protagonista, despertando logo de cara a empatia do público, mesmo sob a faceta do traficante. Ao longo do filme, a atriz transmite com uma verdade quase palpável as motivações, inseguranças, vontades, arrependimentos e contradições de uma mulher que só quer deixar o passado para trás e viver sua nova identidade. “É a primeira vez que eu amei a mim mesma”, ela diz em determinado momento.

É ainda mais louvável a forma como Karla se entrega a Manitas. Assumir uma identidade masculina após ter passado pela transição de gênero é uma tarefa árdua, que demanda a mesma medida de segurança e vulnerabilidade da atriz. Um exemplo recente é a forma como Laverne Cox preferiu que o passado de sua personagem Sophia Burset, em Orange Is The New Black, fosse interpretado pelo irmão.

Nesse sentido, Karla vive de forma camaleônica a transformação de Manitas em Emilia, deixando claro como a mudança externa da personagem impactou também as suas motivações internas. O arco, inclusive, é mostrado de forma delicada pela direção de Audiard, que não foge dos momentos difíceis durante a adaptação de Emilia, mas não deixa de acrescentar uma bem-vinda dose de leveza sempre que possível.

A performance de Zoe Saldaña como a advogada Rita é igualmente genial e também executada com maestria. Com o nome mais conhecido dentre o elenco principal, pelo menos no que diz respeito ao trabalho como atriz mainstream (afinal, ela é protagonista de duas das maiores bilheterias da história do cinema), Zoe incorpora de forma convincente todas as etapas da metamorfose de sua personagem, da exaustão inicial à determinação final.

Zoe Saldaña como a advogada Rita, uma das protagonistas em “Emilia Pérez”, durante um dos números musicais mais marcantes do filme (Foto: Divulgação)

É surpreendente também como Zoe conseguiu guardar em segredo um talento inegável para os números musicais. O trabalho vocal é tão detalhista que ela consegue imprimir as emoções do diálogo em sussurros e notas altas igualmente. Além disso, a desenvoltura em coreografias complexas, especialmente na cena em que cruza o salão dançando voguing e subindo nas mesas, chega a dar saudades da época em que ela dividiu o palco com Britney Spears, em Crossroads (2002).

Emilia Perez levou dois prêmios no Festival de Cannes: o Prêmio do Júri e o de Melhor Interpretação Feminina, que foi dividido entre Selena, Zoe, Karla, a primeira mulher trans a receber esse reconhecimento, e Adriana Paz, que interpreta Epifanía, o primeiro interesse amoroso de Emilia após a transição.

O fato de Selena e Adriana serem equiparadas a Zoe e Karla é uma homenagem desproporcional, principalmente porque esta não chega a aparecer 10 minutos totais durante o filme e não é necessária para a história principal.

É pelas forças de Karla e Zoe, como Emilia e Rita, que o público acompanha a condução do filme e torce pela jornada de duas mulheres em busca de novas vidas e das suas próprias versões de liberdade e justiça, para si e para outros. Como o musical deixa claro, entretanto, abandonar o passado é uma tarefa difícil que não depende só da nossa vontade.

Emilia Pérez chega ao circuito comercial dos cinemas brasileiros em 6 de fevereiro de 2025. Confira aqui os horários e disponibilidade das sessões do filme no Festival do Rio.

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