Híbrida
TEATRO

“Kim – o amor é tua cura” retrata vivência, luta e a resistência de uma travesti

Sentadas em frente ao espelho do camarim, Lucilla Diaz e Dandara Vital se preparam para subir ao palco. Em menos de uma hora, as duas apresentarão ao público “Kim – o amor é tua cura”, que conta a história de Kim, uma travesti na luta por aceitação e por respeito. Mas o espetáculo, já em sua segunda temporada no Teatro Cândido Mendes, não é só sobre Kim: “A Kim é várias ‘Kims’”, explica Lucilla, em entrevista à Revista Híbrida.

A personagem foi construída a partir dos depoimentos de diferentes travestis, colhidos por Marco Calvani, dramaturgo italiano que escreveu “Unhas”, o texto original da peça. Logo, sua história é familiar a muitas travestis e mulheres trans. Interpretada por Lucilla, Kim foi expulsa de casa aos 14 anos e foi obrigada a se prostituir para sobreviver. Na Itália, ela alcançou o auge da carreira e, de volta ao Brasil, tenta lutar contra uma sociedade que faz de tudo para invisibilizar e violentar seu corpo.

Vívian Fróes, mulher trans pianista e cantora lírica que participa do espetáculo, diz que sempre se emociona com as apresentações: “A primeira vez que eu assisti foi indescritível, catártica. E até hoje, no final da peça, quando acontece o assassinato social da Kim, eu toco como se estivesse acontecendo comigo”. Lucilla, apesar de ser uma mulher cisgênero – ou seja, que se identifica com o gênero que lhe foi atribuído ao nascimento – afirma que também se identifica com a personagem. No início da peça, a atriz confidencia ao público o desconforto que experimenta em relação ao próprio corpo desde a puberdade, e que a fez realizar várias intervenções cirúrgicas para mudar sua aparência. “Peço a permissão de vocês para contar a história de Kim”, ela diz à plateia.

Lucilla Diaz vive o papel principal em “Kim – o amor é tua cura” (Foto: Divulgação)
Lucilla Diaz vive o papel principal em “Kim – o amor é tua cura” (Foto: Divulgação)

Em entrevista à Híbrida, Lucilla conta que um dos momentos mais emocionantes de sua vida foi quando, após uma das apresentações, recebeu uma resposta especial de uma pessoa da audiência: “Uma mulher trans veio e me agradeceu por emprestar o meu corpo e contar a história dela”, comenta emocionada. Realizar o espetáculo era um sonho antigo da atriz, que levou oito anos para se concretizar. “No início do processo de preparação, eu me deparei com a problemática do ‘transfake’ e passei a frequentar seminários de ativistas transgêneros e travestis para compreender essa representatividade no mundo da arte”, explica.

Transfake é a denominação para personagens trans interpretados por artistas cisgêneros, pauta importante que coloca em questão a ausência de atores e atrizes transgêneros e travestis nos palcos, mesmo em histórias nas quais interpretariam os próprios corpos. Alessandro Brandão, diretor do espetáculo e artista drag, em parceria com Dandara, atriz e ativista travesti, foi protagonista na adaptação do texto e da montagem para que a peça alcançasse seu objetivo: “ser um lugar de fala”, aponta Lucilla.

“Quando comecei a fazer a peça, eu tinha muita dúvida se queria participar ou não, por se tratar de uma atriz cis. Depois, fui entendendo que eu não estou aqui para defender a Lucilla, estou aqui porque sou um corpo trans ocupando esses espaços”, explica Dandara, acrescentando que essa “é uma representação que vai além dos palcos, está nos bastidores.”

Alessandro concorda com a fala de Dandara e também faz questão de frisar o envolvimento de artistas trans no espetáculo: “É uma questão de inclusão, mais que de representatividade, tanto na equipe técnica quanto nas atrizes”, afirma, citando que boa parte da equipe é formada por pessoas que questionam, com sua existência, o modelo social cisheteronormativo, como uma assistente de palco travesti, uma drag na iluminação e uma pessoa não-binária no figurino e no cenário.

Dandara Vital, atriz e ativista travesti, foi uma das responsáveis pela montagem de “Kim – o amor é tua cura” (Foto: Divulgação)

Dandara, Alessandro e Lucilla afirmam que modificaram e desconstruíram profundamente o texto de Marco Calvani para representar a realidade socioeconômica das travestis e mulheres trans brasileiras atualmente. “Essa peça tem um papel muito importante nesse momento político que o país está vivendo, em que as pessoas trans e negras vão ser as que mais vão sofrer”, diz Dandara.

Para Alessandro, Kim “é uma peça de resistência total em todos os pontos: por ser teatro, por não ter patrocínio e pela temática”. Para financiar o espetáculo, há uma campanha online que ainda está aceitando contribuições neste link.

A peça está em cartaz até o dia 10 de outubro no Teatro Cândido Mendes, na Rua Joana Angélica, 63, em Ipanema. Os ingressos custam R$ 50 a entrada e R$ 25 a meia.

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