Híbrida
TEATRO

Renata Carvalho sobre transfobia e censura: “Me odeiam sem me conhecerem”

Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu

Na noite de 15 de setembro, uma sexta-feira que deveria ser apenas mais uma estreia para a peça que Renata Carvalho vem apresentando há mais de 12 meses, a liminar concedida pelo Exmo. Luiz Antonio de Campos Júnior mostrou que, no Brasil, o direito à liberdade de expressão pode ser revogado a qualquer momento, num piscar de olhos. Nela, o juiz da 1ª vara cível de Jundiaí proibiu que a atriz subisse à ribalta do SESC local com a peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, uma adaptação do texto assinado em 2006 pela inglesa Jo Clifford, no qual ela questiona como Jesus seria recebido se ressuscitasse hoje em dia como uma travesti. A censura não deixou dúvidas: a transfobia humana é tão latente, cega e nociva que nem Jesus Cristo estaria a salvo em 2017.

Renata estava a apenas algumas horas de dar início ao espetáculo. A notícia veio como uma bomba, cujos efeitos não poderiam ser remediados a tempo para que o show continuasse. “Eu tinha acabado de me maquiar e já sabia da liminar, mas tinha que esperar para recorrer. Pensei que fosse dar tempo de reverter e cancelar”, ela conta por telefone, em entrevista exclusiva à Híbrida. Mas com um intervalo de apenas duas horas entre a notificação e o início do espetáculo, a equipe da peça se viu de mãos atadas. “Foi um pouco assustador, um pouco de frustração, de raiva… Uma mistura muito louca de sentimentos”, lembra a atriz.

No texto de sua decisão, o juiz não só declarou que “Rainha do Céu” era de “mau gosto”, mas que também “expunha ao ridículo” figuras religiosas, o que não poderia ser socialmente aceito. Claramente, ele não havia assistido à peça e nem ouvido o monólogo proferido por Renata, no qual os ensinamentos fundamentais pregados na Bíblia – aqueles mesmos, sobre respeito, amor e compaixão ao próximo… – são proferidos com dignidade e indagação. Mas não foi preciso analisar o conteúdo do espetáculo para impedi-lo: apenas a figura de uma travesti foi considerada suficiente para que a arte se tornasse profana. Não importaram suas intenções, seu histórico ou seu talento: Renata, mais uma vez, foi subjugada e condenada simplesmente por ser quem é.

Renata Carvalho, Evangelho de Jesus, Rainha do Céu
Renata Carvalho em cena como Jesus, semanas antes de ser censurada em Jundiaí

“Vejo muita gente assustada, mas a transfobia é algo que eu passo diariamente. As pessoas fazem isso, acham que só por ser uma travesti já é algo desrespeitoso”, explica a atriz, relatando que o espetáculo já havia sofrido repressão em outros momentos da turnê nacional que começou em agosto do ano passado. “Tentam intimidar os SESCs por onde a gente passa, envolvendo até alguns vereadores. Geralmente, no interior ou em cidades muito conservadoras, chega ao ponto de termos polícia dentro da sala de apresentação porque as pessoas ameaçavam me bater. Elas me desejam mal sem me conhecerem”, conta.

Nos dias que se seguiram, tudo o que ela já havia vivenciado como atriz e travesti se intensificou e ganhou proporções nacionais: tanto a reverência, o respeito e a admiração do público, como o ódio gratuito à sua figura. Jornais de todo o Brasil colocaram em letras garrafais: “Peça com Jesus trans foi censurada”. Nas redes sociais, o apoio e o repúdio foram se alastrando; à medida que internautas conservadores e puritanos julgavam sua falta de caráter da mesma maneira desinformada que o juiz de Jundiaí, outros declaravam seu apoio à peça e à atriz. Se houve quem se deu o trabalho de perseguir a equipe de “Rainha do Céu” a ponto de furarem os pneus da diretora Natalia Mello, também houve quem fez questão de lotar os teatros por onde ela e Renata passaram a seguir, esgotando os ingressos de suas apresentações.

“Pra mim, uma coisa muito louca nesse episódio todo é que eu estudava isso na escola! Em 2004, fiz uma performance sobre a Lei 5.536 [a Lei da Censura, criada em 1968, durante a Ditadura Militar] na arte. Na época, eu já pensava comigo mesmo ‘O que eu faria nessa situação? Será que eu continuaria, caso fosse censurada?’ ”, relembra.

Agora, no último dia 5, a atriz recebeu a notícia de que a decisão judicial foi revogada e, finalmente, ela poderá subir aos palcos do SESC Jundiaí com “O Evangelho segundo Jesus”. Por telefone, ela comemora: “Ficamos todos muito felizes. Mesmo. Já sabemos que muitas pessoas nos esperam por lá e estão ansiosos para assistirem à peça. Isso só nos fortalece. Censura jamais!”.

“Descobri que o teatro podia mudar vidas como mudou a minha”

Nascida e criada em Santos, litoral paulistano, Renata hoje tem 36 anos e apenas esse fato já pode ser considerado uma vitória, mesmo que amarga: no Brasil, a expectativa máxima de vida da população trans é de 35 anos. Atriz desde a adolescência e “travesti desde sempre”, ela começou a entender melhor sua sexualidade por volta dos 15 anos. Antes de assumir sua identidade atual e definitiva, ela conta que passou por “fases de construção”. “Eu era uma bicha muito pintosa, fazia drag e tudo. Só depois que consegui me empoderar como travesti. Hoje, entendo que precisamos falar mais sobre o assunto e tirar a travestilidade de baixo do tapete”, pontua.

Em 2004, aos 23 anos, Renata foi expulsa de casa e se mudou para o Rio de Janeiro. Quatro anos depois, graças ao seu envolvimento com a militância, ela teve o primeiro contato aprofundado com travestis quando compareceu a 1ª Conferência Nacional LGBT, em Brasília. “Foi quando eu me descobri. Porque eu sempre quis muito operar e aquela foi a primeira vez que vi muitas mulheres trans diferentes entre si, com vagina ‘cirurgiada’ etc. – aí eu comecei a lutar”, lembra.

(Foto: Lígia Jardim)

Nos palcos, Renata estreou uma adaptação de “A vida como ela é”, uma reunião de crônicas assinadas por Nelson Rodrigues, nas quais ela adicionou um toque pessoal à cena final de “Delicado”. “No fim desse texto, o menino se mata enforcado com um vestido de noiva e deixa um bilhete dizendo que queria ser enterrado assim. Na minha versão, eu coloquei o vestido no meu corpo e gritei: ‘Quero viver assim!’”, conta com orgulho.

Em 2013, ela subiu aos palcos com a montagem “Dentro de mim mora outra”, na qual abordou sua própria travestilidade: “Via que, no teatro, as pessoas tinham muita curiosidade com o assunto. Foi aí que percebi como poderia militar e tentar mudar essa percepção, mesmo sem ter um entendimento muito amplo a princípio. Foi quando percebi que poderia mudar outras vidas como o teatro mudou a minha. A militância me colocou como artista pensante. Com tanta coisa para falar, eu poderia estar montando peças de comédia, com temas infantis ou qualquer coisa. Mas não posso ignorar minha vivência”.

Representatividade trans importa

Para Renata e para qualquer pessoa com bom senso, é inegável que o único motivo pelo qual ela sofreu censura artística em 2017 foi o fato de ser travesti. Em sua visão e com sua experiência, ela aponta que isso é uma manifestação de dois “alvos” da sociedade brasileira: a feminilidade e o corpo trans. “Tudo que se torna feminino é visto como menor, de menos valia. Outra coisa é o repúdio do machismo ao corpo trans – somos uma sociedade corporificada e, com isso, há corpos aceitos e não aceitos, onde entra o corpo trans que é tão negado. Por isso que é tão importante estarmos presentes na sociedade de forma geral, porque isso humaniza e normaliza a nossa figura. Precisamos tirar esse estigma da nossa população. É a visibilidade que vai nos tirar da marginalidade”, defende.

Enquanto pondera sobre os casos de aceitação (ou não) da figura trans ao longo da história brasileira, Renata argumenta que sim, alguns direitos foram conquistados, mas hoje a violência contra os LGBT+ não se esconde mais na calada da noite. “É realmente perigoso. Somos invisíveis tanto em vida quanto em morte. Ninguém se importa com o corpo trans, as pessoas querem que ele fique longe. Ainda somos espancadas à luz do dia e a segunda maior causa da nossa morte é o suicídio, simplesmente porque a gente não aguenta essa pressão toda”, desabafa.

“Ninguém se importa com o corpo trans, as pessoas querem que ele fique longe”

Para além do percentual de visibilidade da população trans e travesti na mídia, Renata também critica a forma com que essas pessoas normalmente são retratadas quando lhes é dada uma “oportunidade”. “Todas nós somos vistas como barraqueiras e de segunda classe. Esperam que a gente chegue a um lugar e já comece a criar confusão. Isso quando não nos confundem com drag queens, o que também é errado”, pontua, enquanto lembra que a figura da travesti existe há séculos no imaginário social, principalmente no Brasil, onde nomes como Rogéria (1943 – 2017) e Roberta Close são sempre abordados de forma “fetichizada”. “Temos que tirar o corpo trans desse lugar sexualizado e torna-lo mais humano, porque hoje ele não é visto como algo privado – temos sempre que falar como transamos, com quem e onde. Acreditam que nós fomos feitas apenas para o sexo. Quem coloca a mão no meu corpo é quem eu deixo!”, enfatiza.

Focada em mudar esse cenário, Renata participa de dois grupos de militância LGBT+: o Representatividade Trans Já que, como o próprio nome indica, busca aumentar o espaço dessas pessoas na mídia; e o Coletivo T, uma companhia artística formada inteiramente por artistas trans. “Precisamos falar de como a mídia nos trata de forma caricatural. Atores cisgêneros não nos tiram da invisibilidade. Nós tivemos isso com [as novelas da] Glória Perez, o Ailton Graça [com a personagem Xana Summer, em “Império”], até com o filme ‘Transamérica’ [Duncan Tucker, 2005]… Mas mesmo assim eu não posso sair com meu homem de casa porque ele é diminuído. Nós não somos mulheres – eu não sou mulher, eu sou travesti!”, defende a atriz, criticando ainda a notícia de que Bruno Gagliasso estaria se preparando para viver uma trans no cinema. “Se ele quiser ajudar mesmo, que faça o par romântico de uma trans. Mas que seja uma travesti de peito, mesmo. Isso sim é colocar a gente em foco e mudar a nossa representatividade”, rebate.

Ao fim do papo, Renata deixa um pedido que serve mais como um puxão de orelha e um lembrete sempre necessário de que a vivência trans continua sendo um desafio no Brasil: “Coloquem pessoas trans nas artes. Procurem atores e atrizes trans para interpretarem esses personagens, deem voz a esses talentos. Precisamos de oportunidades para sair da invisibilidade, porque contratar atores cisgêneros não nos tira das esquinas e não impede que sejamos assassinadas”.

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