Em 2015, durante sua primeira consulta ginecológica, Larissa Darc, autora de “Vem cá: vamos conversar sobre a saúde sexual de lésbicas e bissexuais”, não conseguiu ser atendida. O médico do posto de saúde do SUS se recusou a examiná-la, afirmando que ela era virgem por ter se relacionado apenas com mulheres até então. No ano seguinte, depois de ter transado com um homem, a jovem bissexual buscou outra consulta, dessa vez na rede privada. Mesmo com o atendimento, sua primeira relação com mulher foi novamente ignorada no formulário médico.
Situações como essa são comuns quando tratamos da saúde sexual de mulheres lésbicas e bissexuais, já que muitos profissionais da saúde ignoram que o sexo entre mulheres existe e é válido, sem a necessidade de um pênis ou penetração para configurar o ato como uma relação sexual. Logo, mulheres lésbicas e bissexuais deveriam, pelo menos em tese, ter direito à saúde, à educação sexual apropriada e à proteção gratuita de infecções sexualmente transmissíveis (IST).
Os dados evidenciam essas desigualdades no acesso de lésbicas e mulheres bissexuais aos serviços de saúde. Das que procuram atendimento, cerca de 40% não revelam sua orientação sexual. Entre as que revelaram, mais da metade relatou reações “negativas/discriminatórias” ou de “surpresa” por parte do profissional. Nesse mesmo grupo, 17% afirmam que os médicos deixaram de solicitar exames considerados necessários, segundo o Dossiê Saúde das Mulheres Lésbicas – Promoção da Equidade e da Integralidade (2006), publicado pela Rede Feminista de Saúde.
Apesar da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais do Ministério da Saúde assegurar o direito ao atendimento livre de qualquer discriminação, restrição ou negação em virtude da orientação sexual e da identidade de gênero, isso não acontece na prática. Por isso, a partir de sua experiência e do cenário de desigualdade, a jornalista Larissa Darc escreveu e lançou de forma independe o “Vem cá”.
Em entrevista à Híbrida, ela falou sobre o despreparo do sistema de saúde que encontrou e como faltam métodos de prevenção de IST para pessoas com vaginas.
Híbrida: O livro é escrito em primeira pessoa e tem uma pegada de bate-papo. Por que você escolheu esse estilo e quis trazer sua experiência pessoal para falar desse tema?
Larissa Darc: Eu tive muito receio em escrever um livro-reportagem em primeira pessoa. Eu sabia que estaria expondo a minha intimidade, além de colocar em xeque a suposta imparcialidade esperada de uma jornalista. Contudo, percebi que era importante estabelecer uma conexão com a leitora, mostrando que eu entendo como ela se sente ao perceber que seus direitos sexuais e reprodutivos são ignorados.
H: Quais foram as dificuldades que encontrou durante o processo de pesquisa no tema
LD: A principal dificuldade para falar sobre saúde sexual de lésbicas e bissexuais é a falta de dados recentes para embasar a tese. A gente sabe que existe um problema, mas não consegue quantificar em números a extensão e gravidade dele
No caso de lésbicas e bissexuais, existe uma intersecção de opressões que ocorrem tanto por serem mulheres, quanto por estarem na sigla LGBT
– Larissa Darc
H: O sistema de saúde está preparado para atender mulheres lésbicas e bissexuais?
LD: Como disse uma das médicas entrevistadas, “o sistema de saúde não está preparado para nada que foge da heteronormativadade”. No caso de lésbicas e bissexuais, existe uma intersecção de opressões que ocorrem tanto por serem mulheres, quanto por estarem na sigla LGBT.
H: No livro, você traz que não existe nenhum método de prevenção para o “sexo entre vaginas”. Como é possível se prevenir de infecções nesse caso?
LD: Todos os métodos de prevenção disseminados pelas pessoas são gambiarras. Dizem para recortar camisinha, usar acessórios de dentista ou até mesmo recorrer ao ineficiente plástico filme. Eu, Larissa, não utilizo nenhuma dessas alternativas por não confiar na eficácia de adaptações, além de não me sentir confortável com elas. Nem mesmo a camisinha feminina funcionou pra mim (e olha que eu testei mais de uma vez).
Os cuidados que podem ser seguidos tranquilamente é a observação das alterações da vulva, visitas ao consultório médico, realização de exames de IST e, principalmente, o cuidado com as unhas. Eu sempre gosto de lembrar que DJ bom arranha o disco sim! Unhas grandes podem causar lesões nos lábios ou na vagina, deixando você e a outra pessoa ainda mais expostas a doenças.
H: Depois de realizar a pesquisa do livro, como você avalia as ações que precisam ser feitas para assegurar direito das mulheres lésbicas e bissexuais à saúde sexual?
LD: Existem questões que já podem ser colocadas em prática, além de passos que podem ser dados a longo prazo. Para o atendimento médico, uma formação acadêmica plural e humana já resolveria grande parte dos problemas. Já a adoção de instrumentos adequados, como espéculos de diferentes tamanhos (ferramenta utilizada no papanicolau) resolveria um dos maiores incômodos de mulheres que não se sentem confortáveis com penetração.
Precisamos também de pesquisas consistentes nas áreas de transmissão de infecções sexualmente transmissíveis, prazer feminino e heteronormatividade em relações entre mulheres.
H: Como foi o processo de publicação e lançamento do livro? E como tem sido as respostas das pessoas sobre o tema?
LD: O livro foi publicado, inicialmente, de forma independente. Escrevi a pesquisa como trabalho de conclusão de curso para a faculdade de jornalismo e, posteriormente, juntei dinheiro e imprimi os primeiros exemplares por conta própria. Tanto a arte, revisão, diagramação e organização dos lançamentos foram geridas por mulheres que amam mulheres. Sem essa rede de apoio, nada disso seria possível. Em função da repercussão da obra, recebi o convite da Dita Livros para reimprimir o livro. Em breve faremos o relançamento do “Vem Cá”, dessa vez com editora.