Híbrida
Bixa Preta

“Ser bicha afeminada na favela é mais suave”

"Ser bicha afeminada na favela é mais suave", diz Daniel Batista

Não somos poucos. É crescente o número de vozes LGBTQIA+ em toda parte, principalmente na internet, através de diversos canais, sites e redes sociais por onde alguns dos representantes de nossa comunidade tornam suas presenças mais pertinentes através de reflexões, opiniões e visões diárias. Nosso convidado de hoje na coluna Bixa Preta é uma dessas pessoas.

Bicha preta, afeminada e favelada, Daniel Batista é cria do Jacarezinho, periferia na Zona Norte do Rio de Janeiro. Com 25 anos, ela é uma bicha tatuadora e tem orgulho e prazer de deixar isso bem claro ao longo dos seus quatro anos de trabalho. Criador da festa e coletivo “4:24”, no qual é residente, Daniel toca o projeto desde 2016 com presença marcada na cena noturna carioca, onde já é conhecida e querida por uma parcela grande dos LGBTQIA+ da cidade.

Em 2018, ele se formou em teatro através da Cufa (Central Única das Favelas), em Madureira, e desde criança desenha, pinta e faz poesias. Bailarino, estuda dança na própria comunidade onde mora, motivado por concretizar um sonho que sempre teve, além de realizar projetos sociais em Manguinhos e no Complexo do Alemão, onde também desenvolve projetos artísticos com crianças.

LEIA TAMBÉM —> A vida LGBT nas periferias do Rio

Além das 1001 funções acima, Daniel também tem participado de rodas e palestras em escolas e universidades no Rio de Janeiro, como no Colégio Pedro II, na Estácio de Sá e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), para contar e compartilhar histórias sobre si e suas vivências.

LEIA TAMBÉM —> Milton, Híbridx: “No CP2, encontrei uma comunidade que me aceita como sou”

Figura marcante na internet quando se pensa em pessoas do nosso movimento negro e LGBTQIA+, ele é o nosso convidado dessa edição da coluna, na entrevista que você lê abaixo.

Cria do Jacarezinho, Daniel Batista é idealizador do coletivo e festa "4:24" (Foto: Arquivo Pessoal)
Cria do Jacarezinho, Daniel Batista é idealizador do coletivo e festa “4:24” (Foto: Arquivo Pessoal)

Tiago Bastos: Daniel, é muito bom tê-lo aqui, será um grande prazer ter esse espaço compartilhado com você. Gostaria que você me falasse a sua visão de como é ser gay afeminada e morador de comunidade, uma realidade enfrentada por muitos de nós e que passa por questões como comportamento, aceitação e imagem.

Daniel Batista: Quando eu era menor, tudo era mais difícil. Sempre fui uma criança muito reprimida.  Qualquer coisa que eu falasse, meus pais já me reprimiam e não tinha como rebater o que me diziam – coisa que hoje já mudou, porque se falarem algo, eu rebato e respondo logo. Hoje, tenho mais voz ativa, dentro ou fora da favela. Sobre se vestir, nunca tive problemas. Aqui, “eles” não têm o costume de mexer com a gente. Ser uma bicha afeminada na favela, hoje em dia, é mais suave.

TB: Sabemos que é super importante ter pessoas iguais a nós, principalmente se tratando de LGBTQIA+ e negros, seja na internet ou nos meios de comunicação. Como você se sente contribuindo para que mais pessoas possam ter uma base de identificação e desenvolver uma voz ativa?

DB: Acho super importante, seja no dia a dia ou na internet. Por exemplo, aqui nessa favela, assim como em várias outras, 90% das pessoas são negras e muitas vezes não têm referência, assim como eu não tive uma na minha infância.

Essa situação de ter um referencial já está mudando bastante hoje. Sinto que o impacto é muito grande nas pessoas, às vezes estou passando e recebo elogios tipo “Olha como seu cabelo é maneiro!”. Foi tudo uma consequência. Para ser referência, eu tive referências e fico muito feliz. Muito mais que na internet, temos que ser e estar no nosso dia a dia. É necessário, principalmente para as crianças.

Hoje, tenho mais voz ativa, dentro ou fora da favela

– Daniel Batista

TB: O coletivo e festa “4:24” é um dos movimentos LGBTQIA+ bastante atuante no Rio. Como avalia a importância da criação desse espaço de igualdade para nós na cidade e de promover mais eventos assim para a nossa comunidade?

DB: É importante e também único. Nunca existiu grupos como a 4:24 para reunir LGBTQIA+ na internet e criar eventos a partir disso. É super legal porque temos pessoas não só do Rio, mas de vários outros estados. Hoje, já até existem outros grupos parecidos, mas foi importante sermos um dos primeiros a criar esse espaço de convivência e lazer para nós mesmos. É sobre isso, ocupar espaços.

TB: Você é conhecido principalmente pelo seu trabalho como tatuador e pelas artes que carregam consigo toda uma mensagem de ancestralidade. Sabemos que essa profissão, em sua maioria, é exercida por homens e que traz todo um histórico de machismo e intolerância. Como foi a sua trajetória nesse espaço?

DB: Eu comecei a tatuar em 2016 e voltei a desenhar em 2014. Antes disso, eu só desenhava na infância. Coloquei minha cara a tapa mesmo, não tinha muita noção sobre estilo e estética. Comecei com desenhos autorais, mas sentia que faltava algo a mais e trouxe a ideia da ancestralidade nas artes e na minha fala também. Fui conseguindo público e posso dizer que 90% dos meus clientes são negros.

Às vezes, recebo mensagens de pessoas que podem fazer [tatuagem] pela grana, mas que agradecem muito pelo meu trabalho existir. É muito gratificante, porque são poucas as pessoas que fazem trabalhos voltados para a pele negra. Já ouvi dos meus clientes relatos de trabalhos que nem as fotos foram postadas pelos tatuadores. Enfim, esse retorno que recebo me dá forças para continuar.

É sobre a existência de poucos gays e mulheres nesse mundo da tatuagem. É um meio bem branco e homofóbico, acho importante se afirmar, inclusive através da minha tag #BixaTatuadora.

Daniel sobre a profissão de tatuador: “É um meio bem branco e homofóbico, acho importante se afirmar” (Foto: Arquivo Pessoal)

TB: Troca de experiências e vivências são fundamentais para o crescimento de todos. Muito bom ver que você é uma dessas pessoas que estão incentivando outras a se enxergarem e terem referencial. Tem alguma mensagem para alguém que queira construir um trabalho semelhante ao seu?

DB: Eu diria que nada para a gente é fácil, enquanto negros, LGBTQIA+ e favelados. Nada é fácil e nunca foi! Pode ser que, um dia, as coisas melhorem para nós, mas se você tem um sonho, objetivo ou  projeto, o importante é ter foco e botar a cara para fazer. Pode ser que a primeira vez não dê certo, nem a segunda ou terceira, mas tenha um foco e lute por isso. Se você não correr atrás, ninguém irá por você.

Pessoas podem dizer que você não é capaz, como na minha vida todas me subestimaram. Quando era mais novo, isso me deixava pra baixo e eu sempre achava que não era capaz de fazer. Mas são coisas que as pessoas falam só para te desmotivar e te deixar sem coragem. A mensagem que eu deixo é isso: cuide de você, seu foco e seus sonhos.

Notícias relacionadas

O lugar de Xuxa na cultura drag como a conhecemos hoje

João Ker
3 anos atrás

Liga de hóquei dos EUA recua e volta a permitir símbolos LGBT+ em partidas

Livia Muniz
1 ano atrás

QueeRIOca: novo espaço de cultura LGBTQIA+ abre as portas no centro do Rio

João Ker
7 meses atrás
Sair da versão mobile